Certo dia eu conheci um menino. Era alto e bonito demais para passar despercebido. Vivia em outro mundo, literalmente. Para os céticos, "literalmente" é um erro gramatical na frase anterior, mas ah! ele não é para os céticos. Podem parar por aqui. Quem não crê o acharia e o achará no mínimo estranho. Crer para ver, para vê-lo, como um mundo secreto do qual os descrentes não teriam a chave.
Eu tinha a chave? Talvez. Mas entrar em seu mundo não o tornava menos secreto, para o meu desalento. Mas ele era, ele ia sendo, e aquilo me inquietava e me afagava, sem que a inquietação precisasse sair para o afago vir. Ele gostava de ensinar, de convidar a ver a maravilha e magia do mundo, dos mundos. Desafiava-nos, queria que nos tornássemos melhores do que somos. Falava da terra, água, fogo e ar, sem às vezes pronunciar palavra. Ele era, também, contraditório. Ah! A contradição não é privilégio dos que não sabem o que fazer com a vida, e ele sabia, ou achava que sabia, mas a verdade é que só a vida sempre sabe o que fazer com a gente.
Pois foi essa vida que me juntou àquele menino com quem Manoel gostaria de prosear. Ele falava dos desacontecimentos, focava nas desimportâncias. Detestava as Coisas Importantes que nos tornam chatos e iguais. Um dia conversou por longos minutos em uma língua que inventara. Gostava de brincar com as palavras: jogava-as para o alto, virava-as do avesso, e com um sorriso peralta tirava-as detrás da orelha como um mágico e sua carta. Eu por muitas vezes ficava em silêncio. Recolhia as palavras dentro do peito meu. Às vezes por não querer estragar a cena. Sempre por não querer estragar nada. Mesmo em silêncio, meu mundo se alargava. Meu coração estava desperto. As palavras dentro de mim dançavam sem pudor, corriam descalças, pulavam corda, subiam em árvore. Talvez o menino não sabia a liberdade que me fazia conquistar. Em parte porque eu não dizia, em parte porque jamais saberia dizê-lo.
Meu encontro com ele fora uma ponte entre o que eu era e o que eu precisava ser. Firmou o próximo passo, o degrau conquistado, me fez tomar nas mãos o que já era meu, mas que eu antes mirava apenas contornos. Só me dei conta disso ao atravessar a ponte, ainda que durante a travessia eu já intuísse, já que sua companhia emanava aquele brilho que só algumas pessoas que passam por nós oferecem aos nossos olhos. Na inquietação ou no afago, fui quebrando certezas e tornando outras mais sólidas. Quis ir mais longe sem esquecer qual é meu ponto de partida. Entendi que eu me tenho antes de ter ou soltar qualquer coisa.
Se um dia vocês virem esse menino por aí, entreguem a ele minhas palavras de agradecimento. Elas estão aqui dentro, molhadas de banho de rio, esperando para sair a qualquer hora. Para encontrá-lo, vocês terão que procurá-lo em um raio da manhã, conversando com uma fada ou esperando uma salamandra. Ah, se forem céticos os que ainda insistiram em me ler, esqueçam. Vocês não o verão. Ele será como tantos outros meninos altos e bonitos. Mas se vocês, que creem, sabem de quem estou falando, não se esqueçam de levar minhas meninas-palavras. Elas podem brincar junto das palavras dele. E quando eu o encontrar de novo vou saber que foram entregues, mesmo que o nosso olhar e o nosso abraço sejam dados no mais perfeito silêncio de quando o mundo inteiro dorme e o coração acorda.
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