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Mostrando postagens de 2013

Crescer de novo ou De um dia de trabalho

"A explicação rompe das nuvens, das águas, das mais vagas circunstâncias: Não sou eu, sou o Outro que em mim procurava seu destino." "Tá vendo essa cicatriz?", apontava para o espaço entre uma sobrancelha e outra, "É de quando eu bati a cabeça no portão, porque eu queria esquecer. Eu queria esquecer o que ela me fez."  "Psicótico crônico", disse o médico. "Sem sintomas positivos. Abra o livro no capítulo X e você verá sua descrição perfeita". "É muito bonito atendê-lo", eu disse, de repente, com a voz tímida. "É, é muito interessante o caso dele. É uma aula de psicopatologia". "Não", eu quis dizer, mas não disse. "Não é uma aula de psicopatologia. É uma aula de humanidade, de humanice. Ele parece ter saído de um filme de Almodóvar. Ele não está naquele livro de doenças. Ele está em mim, ele está em você, em todas as vezes que sofremos tanto que gostaríamos de poder bater a cabeça no po

Nada rima com angústia

São 18h40 no centro da capital. Luzes, buzinas, e o irritante, insuportável anda-e-para da minha condução. Pior ainda para o motorista, eu penso. Aquele cansaço, a vontade de chegar, a esperança de engatar e para. De novo. O homem, muito esperto, criou máquinas que fazem andar, mas agora não chega mais a lugar algum. Vida irônica, eu penso. E paro. De novo. Do meu lado, uma mulher me acotovela sem querer, mexendo na bolsa. Eu odeio a mulher. Eu queria que aquela mulher não existisse. Eu queria que ninguém existisse, que as pessoas de repente sumissem, todas à minha frente, de todos os carros, os que estão a pé também, para que eu pudesse fluir. Meu Deus! Eu não estou fluindo. Minha vida parece a condução em que me encontro: anda-e-para. Aquele cansaço, a vontade de chegar, a esperança de engatar... e para. De novo. (...) Nada rima com angústia, penso de repente. An-gús-ti-a. Não pode ser à toa que nada rima com ela. Angústia é dor cega e sem par, à procura de ancoragem na palavra.

No olhar da Cinderela - parte II

O medo, o medo redigiu-se ínfimo olhando aquele corpo de mulher. Poderia ser apenas mais uma, poderiam ser todas em uma só. O feminino em pele, cheiro e respiração. Ele percebeu a dádiva de poder contemplar outro ser humano tão perto e tão irreversivelmente longe. Aproximou-se gatunamente e declarou-se dela o súdito da noite. No meio daquele vai-e-vem universal, inevitavelmente, os olhos se encontraram: ela percebendo que desejava mais ardentemente ser vista do que fodida, ele que sem conseguir decifrar aqueles olhos súplices não a via. E foi dentro daqueles olhos que desenhou-se a histórica trágica. Ele, enfim, dormiu apático na noite segredosa e cálida. E somente a noite era capaz de saber se a indiferença era uma defesa para a sua confusão. Ela despertou-se tímida, sóbria e estranha e sabia que não era pela droga que sentia-se tão pesada que mal pôde levantar. Era pela constatação que tivera naqueles olhos, quando o descanso de ser si mesma acabou-se em um átimo, sem que ela p

No olhar da Cinderela - parte I

Começou de súbito, como sempre começa. A embriaguez corta o fio que leva um momento a outro: todas as coisas começam de súbito.  A festa estava mesmo ótima. Estava? Ele passeava nos quatro cantos de si procurando saber se ali era um bom lugar e o olhar da moça parecia confirmar que sim. Ela, estreando seu vestido de caveiras cujo fim ficava no limite entre o poder e a vulgaridade (mundo machista de merda!), não dava atenção ao pensamento que sussurrava que queria estar em casa no sofá – se não viesse da própria cabeça, viria do pé, apertado sem escrúpulos dentro do scarpin . Ela procurava um príncipe – se assim for chamado aquele que a olharia por inteiro e enxergaria o seu sorriso de um jeito que ninguém mais. Ele procurava a próxima que ocuparia o pequeno espaço do coração que reservara às próximas, enquanto o resto do latifúndio estava fechado para um Relacionamento Aberto. Ele reparou nos óculos e em como gostara de garotas míopes desde o colégio. Ela reparou nas vírgulas, n