Há imagens que brotam na nossa cabeça para mostrar que somos o que fomos. Dia desses, sem aviso, me veio a cena em que minha avó matava galinha no quintal. Difícil esquecer o pescoço exposto, inocente, a galinha sem angústia porque era imortal, eu angustiada por mim e por ela. O sangue jorrando, a força bruta de minha avó de quem cumpre o dever de viver. Lembro-me de uma vez em que a galinha, meio morta, saiu correndo. Um horror! A culpa é sua, fia, dizia a vó, num pode ter dó que ela num morre! Morria, a despeito de mim.
Pois bem veio na cabeça que, fosse eu a galinha de pescoço inerte esperando a faca imperiosa, sairia de mim não sangue, mas palavras. A cena não me abandona mais: jorrariam todas as palavras que moram aqui na garganta, que não descem, nem sobem, ficam coaguladas. Essas palavras que diriam tudo. Por séculos eu ficaria jorrando. Que alívio poder dizer tudo! Suspiro. Não sou galinha. Sou angústia de ser mortal, que só por ser mortal pode dizer alguma coisa. A perfeição é muda porque não tem nada a tirar nem por. Só o que é falho quer falar. E eu sou a sina de dizer menos do que gostaria, de aceitar a palavra viva da garganta que ao sair da boca já não é mais o que intencionava ser.
Dia desses vi uma criança bebendo o vento. Menina pequena, idade pouca, não devia nem falar. Ela fechava os olhinhos, abria a boca e bebia grandes goles, entregue à satisfação que não entendia. Me deu uma tristeza de ser adulta. Eu penso, teorizo e tento entender o vento. Ela o vive. Ela, por ainda não falar, não tinha que sofrer a angústia de não saber falar.
Ultimamente tenho buscado a mim com afinco. Sei que ficar me antecipando ao que os outros vão pensar do que eu sou me impede de ser. Me colocar muito no lugar de alguém faz com que eu fique por lá, muitas vezes. E eu quero voltar para mim. Mas que sou eu? Quem? O objeto buscado que dorme em segurança ou essa insegurança que busca? Os dois? O equilíbrio frágil entre um e outro?
Por vezes tenho a ilusão de que, quando eu me achar, vou poder dizer. Tentadora faca no pescoço da galinha. A epifania desses dias tem me mostrado que, ao contrário, eu me acho é dizendo, no instante fugidio em que me perco de novo. Eu não me pertenço. Eu vivo, a despeito de mim. Não existe um eu seguro que finalmente para de se buscar. Talvez a segurança seja a morte. Morte que iguala galinhas, crianças e adultos. A morte é muda como a perfeição. Só a vida, falha, fala. O quadro amarelado de tempo na parede, a mancha na blusa, a cicatriz na sobrancelha, as rachaduras no pé da moça jovem que só anda descalça, contrariando a ordem e o consenso. Só a vida, embutida de morte, é singular. A vida é o que acontece entre a morte e a perfeição. Nesse afã por acertar sempre, me esqueço de que ninguém erra como eu. Na vontade de caber no olhar dos outros, não me lembro de que eu sou muito mais aquilo que escapa. Esparrama. Não se enquadra. Se um dia couber em algum olhar, terei morrido.
Cá estou eu, fal(h)ando. Quero me deixar um pouco por aí para poder fluir. Tirar algumas pedras do meu barco. Episódios como o da vó matando galinha e a menina bebendo o vento me fazem ver que ninguém chegará para me salvar da solidão de ser só eu. Tem tanto em mim que nem eu mesma sei! Ninguém trará a faca da misericórdia que irá me revelar inteira. Eu que me contente com palavra por palavra, conta-gotas da existência, saindo vivas e se transformando em outra coisa no mundo. Eu que aceite o erro que me faz viver. Eu que abrace o mistério que eu sou - para mim e para os outros.
Escrever em um momento líquido como este é das minhas maiores coragens. Eu que só queria escrever quando tivesse certeza, que só queria viver quando tivesse certeza (e escrever e viver são, no fundo, verbos de uma ação só). Pois a solidez tem me feito pesada. Me dispo, me toco, me encaro e me solto. Me encontro no instante fugidio em que me perco de novo. Então me ofereço. E o que eu digo nasce, a despeito de mim.
Ultimamente tenho buscado a mim com afinco. Sei que ficar me antecipando ao que os outros vão pensar do que eu sou me impede de ser. Me colocar muito no lugar de alguém faz com que eu fique por lá, muitas vezes. E eu quero voltar para mim. Mas que sou eu? Quem? O objeto buscado que dorme em segurança ou essa insegurança que busca? Os dois? O equilíbrio frágil entre um e outro?
Por vezes tenho a ilusão de que, quando eu me achar, vou poder dizer. Tentadora faca no pescoço da galinha. A epifania desses dias tem me mostrado que, ao contrário, eu me acho é dizendo, no instante fugidio em que me perco de novo. Eu não me pertenço. Eu vivo, a despeito de mim. Não existe um eu seguro que finalmente para de se buscar. Talvez a segurança seja a morte. Morte que iguala galinhas, crianças e adultos. A morte é muda como a perfeição. Só a vida, falha, fala. O quadro amarelado de tempo na parede, a mancha na blusa, a cicatriz na sobrancelha, as rachaduras no pé da moça jovem que só anda descalça, contrariando a ordem e o consenso. Só a vida, embutida de morte, é singular. A vida é o que acontece entre a morte e a perfeição. Nesse afã por acertar sempre, me esqueço de que ninguém erra como eu. Na vontade de caber no olhar dos outros, não me lembro de que eu sou muito mais aquilo que escapa. Esparrama. Não se enquadra. Se um dia couber em algum olhar, terei morrido.
Cá estou eu, fal(h)ando. Quero me deixar um pouco por aí para poder fluir. Tirar algumas pedras do meu barco. Episódios como o da vó matando galinha e a menina bebendo o vento me fazem ver que ninguém chegará para me salvar da solidão de ser só eu. Tem tanto em mim que nem eu mesma sei! Ninguém trará a faca da misericórdia que irá me revelar inteira. Eu que me contente com palavra por palavra, conta-gotas da existência, saindo vivas e se transformando em outra coisa no mundo. Eu que aceite o erro que me faz viver. Eu que abrace o mistério que eu sou - para mim e para os outros.
Escrever em um momento líquido como este é das minhas maiores coragens. Eu que só queria escrever quando tivesse certeza, que só queria viver quando tivesse certeza (e escrever e viver são, no fundo, verbos de uma ação só). Pois a solidez tem me feito pesada. Me dispo, me toco, me encaro e me solto. Me encontro no instante fugidio em que me perco de novo. Então me ofereço. E o que eu digo nasce, a despeito de mim.
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