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antes de ir embora o sentimento se demora e fica curtido no corpo, fermentando os sentidos. a retina o projeta nas esquinas do mundo. carros como o seu são os mais salientes das ruas, cheiros da vida acordam obscenidades, a imaginação percorre o que antes andei com a carne e o coração. pensamento garimpando lembranças no meio do trânsito, ou tirando o lixo, ou fechando a janela do quarto por onde você gostava de olhar - vai chover e não é pouco. eu quis muito. e o querer abrasa o corpo e o consome, o dia-após-dia do depois é para sua reconstituição. para onde será que você está olhando agora? alguém me chama e fura a bolha do pensamento, respondo o mais educada que posso mas queria responder era nada. não, não é que eu tenha te querido tanto assim o tempo todo, o sentimento não se espalhou de um jeito uniforme - é que eu queria também o que a ideia te ajudava a ser, aquele que colocaria em riste meus anseios, nossos pequenos futuros pareados que foram raleando, raleando antes.  m
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2ª carta para a minha avó (ou pedaços de vida e morte)

   O que faz de um sorriso um sorriso não é a simetria da dentição ou sua branquetude escovada. É algo além dele próprio. Iluminura que a vida deixa de rastro num rosto. Isto aprendi com a senhora, vó, com seus olhos gargalhantes. É muito mais difícil sorrir sem dentes porque aí não dá pra dissimular muita coisa. A transparência o revela em sua essência. Pois acontece que toda santa vez que atendo uma paciente banguela, vó, a saudade me abraça. Saudade tem braços delicados mas aperta com valentia. Moça feita de passado mas que tem pacto é com o presente. Se a saudade falasse de coisas idas, ao olhar para aquelas senhoras hoje eu não reconheceria o seu sorriso. Nada de significativo, de fato, se tornaria nosso. Triste, não é? Ainda bem que ela existe!     Pois a saudade tem me contado algumas coisas. Uma delas é que a senhora fez um grandecíssimo trabalho. Eu não sei o que você colocou no leite dos seus filhos, naquela pobreza desgentil da roça, que nutriu e fez crescer tanto o cora

O que você não sabe

- Como você faz para ouvir tudo isso e não se envolver?, perguntou ela, com seus olhos doces. (Quando eu era pequena, certa vez, me deparei com essas lembranças que entregam em missa de sétimo dia. Era uma família na foto, com um trecho da "Canção da América", do Milton Nascimento. Minha mãe me explicou que eram conhecidos dela, e morreram, todos, em um acidente. Aquela informação toda custou a entrar na minha cabeça. Aquilo destrancou a porta para a tristeza do mundo. O impacto daquele momento dura até hoje, porque quando escuto que amigo é coisa pra se guardar do lado esquerdo do peito, a voz pungente do Milton vai direto nessa chave que abre a porta da tristeza. Quando criança, também, o momento da missa que mais gostava era o de oferecer a "paz de Cristo". O estranho rosto ao lado se transformava em familiar exatamente nessa hora. Estávamos a um sorriso de nos tornar irmãos. Até hoje, por causa disso, essa hora é a que mais me agrada: o alcançar concret

A despeito de mim

Há imagens que brotam na nossa cabeça para mostrar que somos o que fomos. Dia desses, sem aviso, me veio a cena em que minha avó matava galinha no quintal. Difícil esquecer o pescoço exposto, inocente, a galinha sem angústia porque era imortal, eu angustiada por mim e por ela. O sangue jorrando, a força bruta de minha avó de quem cumpre o dever de viver. Lembro-me de uma vez em que a galinha, meio morta, saiu correndo. Um horror! A culpa é sua, fia, dizia a vó, num pode ter dó que ela num morre! Morria, a despeito de mim. Pois bem veio na cabeça que, fosse eu a galinha de pescoço inerte esperando a faca imperiosa, sairia de mim não sangue, mas palavras. A cena não me abandona mais: jorrariam todas as palavras que moram aqui na garganta, que não descem, nem sobem, ficam coaguladas. Essas palavras que diriam tudo. Por séculos eu ficaria jorrando. Que alívio poder dizer tudo! Suspiro. Não sou galinha. Sou angústia de ser mortal, que só por ser mortal pode dizer alguma coisa. A perfei

O menino de outro mundo que eu conheci nesse

Certo dia eu conheci um menino. Era alto e bonito demais para passar despercebido.   Vivia em outro mundo, literalmente. Para os céticos, "literalmente" é um erro gramatical na frase anterior, mas ah! ele não é para os céticos. Podem parar por aqui. Quem não crê o acharia e o achará no mínimo estranho. Crer para ver, para vê-lo, como um mundo secreto do qual os descrentes não teriam a chave. Eu tinha a chave? Talvez. Mas entrar em seu mundo não o tornava menos secreto, para o meu desalento. Mas ele era, ele ia sendo, e aquilo me inquietava e me afagava, sem que a inquietação precisasse sair para o afago vir. Ele gostava de ensinar, de convidar a ver a maravilha e magia do mundo, dos mundos. Desafiava-nos, queria que nos tornássemos melhores do que somos. Falava da terra, água, fogo e ar, sem às vezes pronunciar palavra. Ele era, também, contraditório. Ah! A contradição não é privilégio dos que não sabem o que fazer com a vida, e ele sabia, ou achava que sabia, mas a verd

Num único jato

(...não são as pessoas. Não sou eu. É o cheiro de verdade que fica quando a gente se abraça e que continua em mim quando elas partem. Tenho farejado a verdade feito um cachorro louco, e a vida tem feito minhas narinas vibrarem atentas ao menor vestígio dela. Se não encontra, volta amuado ou range os dentes, mas não fica. Estou cada vez mais intolerante a inverdades. Não sou eu. Não são as pessoas. É algo além de nós. É esse algo além de nós que entrelaça nossos fios na costura do invisível. Por que é que o homem resolveu brincar de costurar encontros com fios tão visíveis quanto frágeis, que se desfazem ao menor contato com o mais profundo do outro? Quem foi que disse a ele que ele era capaz de fabricar o infabricável? Ninguém entende que preciso desse cheiro quase como preciso respirar. Ninguém entende que preciso abraçar o invisível. Não há pessoa no mundo que consiga dimensionar a minha necessidade de ser amor antes, durante e depois. Nenhuma criatura que saiba que o que sustenta o

Carta para minha vó (ou pedaços de vida e morte)

Ah, vó! Eu queria colocar minha história em linha reta, num desenrolar bonito e colorido. Mas ela fica num emaranhado do qual só apanho alguns pedaços. Na verdade os pedaços é que me apanham. Divinópolis virou um precipitado de lembranças grossas, que se acumulam em nuvem, carregam o céu. Quando venho aqui, não sei dizer se quem chove sou eu ou a cidade. A Morte, maiúscula, te levou daqui, e ela, que desabou meu edifício com tudo dentro, serviu para tornar visível a morte, minúscula e imperceptível a olhos menos atentos, que exerce seu ofício de cupim e corrói as paredes com paciência. Mas meus olhos sempre foram atentos. Desde antes de a senhora partir, Divinópolis me é nuvem carregada, porque aqui eu quase consigo tocar com a mão as mudanças que o tempo traz. Sempre temi a Morte maiúscula que a morte minúscula anunciava: o cachorro ficando cego, cada vez menos galinhas no quintal, o vizinho que era criança (eu juro que era!) tendo filho, a careca mais vistosa na cabeça do meu pai. N