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Mostrando postagens de 2015

2ª carta para a minha avó (ou pedaços de vida e morte)

   O que faz de um sorriso um sorriso não é a simetria da dentição ou sua branquetude escovada. É algo além dele próprio. Iluminura que a vida deixa de rastro num rosto. Isto aprendi com a senhora, vó, com seus olhos gargalhantes. É muito mais difícil sorrir sem dentes porque aí não dá pra dissimular muita coisa. A transparência o revela em sua essência. Pois acontece que toda santa vez que atendo uma paciente banguela, vó, a saudade me abraça. Saudade tem braços delicados mas aperta com valentia. Moça feita de passado mas que tem pacto é com o presente. Se a saudade falasse de coisas idas, ao olhar para aquelas senhoras hoje eu não reconheceria o seu sorriso. Nada de significativo, de fato, se tornaria nosso. Triste, não é? Ainda bem que ela existe!     Pois a saudade tem me contado algumas coisas. Uma delas é que a senhora fez um grandecíssimo trabalho. Eu não sei o que você colocou no leite dos seus filhos, naquela pobreza desgentil da roça, que nutriu e fez crescer tanto o cora

O que você não sabe

- Como você faz para ouvir tudo isso e não se envolver?, perguntou ela, com seus olhos doces. (Quando eu era pequena, certa vez, me deparei com essas lembranças que entregam em missa de sétimo dia. Era uma família na foto, com um trecho da "Canção da América", do Milton Nascimento. Minha mãe me explicou que eram conhecidos dela, e morreram, todos, em um acidente. Aquela informação toda custou a entrar na minha cabeça. Aquilo destrancou a porta para a tristeza do mundo. O impacto daquele momento dura até hoje, porque quando escuto que amigo é coisa pra se guardar do lado esquerdo do peito, a voz pungente do Milton vai direto nessa chave que abre a porta da tristeza. Quando criança, também, o momento da missa que mais gostava era o de oferecer a "paz de Cristo". O estranho rosto ao lado se transformava em familiar exatamente nessa hora. Estávamos a um sorriso de nos tornar irmãos. Até hoje, por causa disso, essa hora é a que mais me agrada: o alcançar concret

A despeito de mim

Há imagens que brotam na nossa cabeça para mostrar que somos o que fomos. Dia desses, sem aviso, me veio a cena em que minha avó matava galinha no quintal. Difícil esquecer o pescoço exposto, inocente, a galinha sem angústia porque era imortal, eu angustiada por mim e por ela. O sangue jorrando, a força bruta de minha avó de quem cumpre o dever de viver. Lembro-me de uma vez em que a galinha, meio morta, saiu correndo. Um horror! A culpa é sua, fia, dizia a vó, num pode ter dó que ela num morre! Morria, a despeito de mim. Pois bem veio na cabeça que, fosse eu a galinha de pescoço inerte esperando a faca imperiosa, sairia de mim não sangue, mas palavras. A cena não me abandona mais: jorrariam todas as palavras que moram aqui na garganta, que não descem, nem sobem, ficam coaguladas. Essas palavras que diriam tudo. Por séculos eu ficaria jorrando. Que alívio poder dizer tudo! Suspiro. Não sou galinha. Sou angústia de ser mortal, que só por ser mortal pode dizer alguma coisa. A perfei

O menino de outro mundo que eu conheci nesse

Certo dia eu conheci um menino. Era alto e bonito demais para passar despercebido.   Vivia em outro mundo, literalmente. Para os céticos, "literalmente" é um erro gramatical na frase anterior, mas ah! ele não é para os céticos. Podem parar por aqui. Quem não crê o acharia e o achará no mínimo estranho. Crer para ver, para vê-lo, como um mundo secreto do qual os descrentes não teriam a chave. Eu tinha a chave? Talvez. Mas entrar em seu mundo não o tornava menos secreto, para o meu desalento. Mas ele era, ele ia sendo, e aquilo me inquietava e me afagava, sem que a inquietação precisasse sair para o afago vir. Ele gostava de ensinar, de convidar a ver a maravilha e magia do mundo, dos mundos. Desafiava-nos, queria que nos tornássemos melhores do que somos. Falava da terra, água, fogo e ar, sem às vezes pronunciar palavra. Ele era, também, contraditório. Ah! A contradição não é privilégio dos que não sabem o que fazer com a vida, e ele sabia, ou achava que sabia, mas a verd