Pular para o conteúdo principal

Meu guardião

Não sei exatamente como a proximidade se deu, como nesses encontros em que nos deparamos de repente dentro e, fazendo tão parte de nós, não vemos início - nem fim, apenas existem. Eduardo existe em mim hoje, em um espaçoso e confortável lugar, onde, quando ele se ausenta, me refugio com a lembrança de sabê-lo ali e sinto uma gratidão profunda.
Eduardo é uma das pessoas mais bonitas que eu conheço. É um rapaz que atrai olhares e faz bem aos olhos. Seu queixo imponente de homem abriga a barba pouca que cresceu meio sem rumo, pouco convincente, não negando a ele seu ar de menino. Olhos, nariz e dentes formam uma coisa harmoniosa. Não é alto e nem baixo demais; não tem obsessão por arquitetar músculos, o que muito me agrada, por assim não estragar a composição natural com um jeito que poderia soar falso. Porque Eduardo tem a beleza das coisas humanas, que simplesmente são. Ele foge das convenções sociais, onde a beleza se esforça para ser bela. E isso diz do que é bonito por dentro também; aliás, fora e dentro são separados apenas quase que didaticamente, a questão é que não se passa indiferente à sua beleza una.
A beleza de Eduardo sempre me tocara, e de formas diferentes, confesso. Nossa relação também tem a beleza das coisas humanas demais. Meu amor por ele é reconhecido (ou talvez tenha se transformado) de maneira diferente das de antes. Tenho por ele hoje o amor das certezas: a amizade. Amizade em seu sentido mais cru, menos maquiado, e, ao mesmo tempo,  mais requintado - de onde, tirando todas as armaduras que utilizamos para nos defender frente a uma outra pessoa, fica a essência. Somos amigos da maneira mais essencial em que ser amigo pode mostrar. Sendo isso tão claro e sólido em nós, nos comunicamos e nos entendemos nus de proteção. Não é que eu saiba tudo que é dele e ele saiba o que é meu, por simples limitação de não poder nunca se alcançar o todo que uma pessoa é. Sábio truque da vida, nos conhecemos muito bem e chegamos o mais longe que é possível nesse conhecimento, sempre esbarrando no limite misterioso e fascinante de ter diante de nós alguém simplesmente diferente; se assim não o fosse, perderia-se a graça.
Sendo a nossa base tão explícita, podemos trazer o que é implícito à tona, podemos ser muitos ao mesmo tempo, ser contraditórios, ou o que quer que seja dessas humanidades, que não precisamos nos justificar ou nos envergonhar. Sendo a raiz tão firme, podemos conversar sobre tantos assuntos quanto forem possíveis, desde os galhos mais profundos aos superficiais: mais do que a liberdade de dizer a ele as coisas mais sérias, tenho a liberdade de dizer as mais bobas. Sendo muito parecidos mas inevitavelmente diferentes, podemos até nos cansar um do outro e dizer que estamos cansados, porque, nos preenchendo tão bem, entendemos também os espaços.
Eduardo sabe da sua importância para mim. Sinto que quando duas pessoas estão tão conectadas, esse saber é inevitável... e não escrevo porque é necessário. Escrevo porque as palavras em mim pedem para sair e se inscrever na vida como forma de agradecimento a ela. Pois eu agradeço. Agradeço por cada pedacinho dessa relação que se construiu nesses anos e se constrói ainda, nunca terminada. Por todas as conversas com choro, por todo café (“Marcela, olha o tanto de açúcar!”) de fim de tarde, por toda sua paciência com minhas lamúrias, cantorias, falta de senso de direção e com meus hormônios. Por ceder a(s) casa(s), o quarto, o abraço, para eu morar. Por ter uma pasta com meu nome no seu computador e um chinelo meu no seu guarda-roupa. Por me alimentar com aqueles biscoitos integrais horríveis e dividir chocolates comigo escondido. Por cada descoberta - feita juntos, ou compartilhada. Por me mostrar que o amor ensina e o amor aprende. Por ele ser ora criança, ora psicólogo, muito bobo ou poeta.
Não é sempre fácil morar aqui dentro e ter conforto nos quatro cantos de nós. Por isso é que é tão necessário poder se dividir nos outros. E eu me divido. Hoje, eu falo de dentro desse tranquilo lugar onde coloco Eduardo, por ele ser e deixar com que eu seja, por me aceitar quando eu não caibo em mim e por me ensinar que a vida, quando resolve ser generosa, nos presenteia sem economias e nos faz querer viver mais. Mais perto. Melhor. Eu o guardo para poder guardar o que de há de mais bonito em mim.

Comentários

  1. Se até agora esse é o primeiro comentário é porque as palavras são limitadas pra descrever a beleza dessas palavras. Elas transbordam sentimento sincero. Você falou tudo e me fez entender esse simples paradoxo da vida, só nos dividindo que nos completamos.

    ResponderExcluir
  2. Eu fiquei muito feliz, mesmo, com seu comentário, Gabriel!

    ResponderExcluir
  3. Nossa... é verdade!! Terminar de ler o que vc escreve é como presenciar uma estrela cadente, ver uma lua linda no céu, ou qualquer coisa linda... nos deixa sem palavras! Qualquer coisa que vamos dizer é pouco...
    Só uma coisinha: tem gente que passa a vida toda (a vida toda MESMO!) procurando por alguém assim, por uma relação tão pura e bonita como a de vcs dois. E é lindo, também, ver que a amizade verdadeira realmente existe.

    ResponderExcluir
  4. Ai, Lu, me contento em comentar: te amo!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Nada rima com angústia

São 18h40 no centro da capital. Luzes, buzinas, e o irritante, insuportável anda-e-para da minha condução. Pior ainda para o motorista, eu penso. Aquele cansaço, a vontade de chegar, a esperança de engatar e para. De novo. O homem, muito esperto, criou máquinas que fazem andar, mas agora não chega mais a lugar algum. Vida irônica, eu penso. E paro. De novo. Do meu lado, uma mulher me acotovela sem querer, mexendo na bolsa. Eu odeio a mulher. Eu queria que aquela mulher não existisse. Eu queria que ninguém existisse, que as pessoas de repente sumissem, todas à minha frente, de todos os carros, os que estão a pé também, para que eu pudesse fluir. Meu Deus! Eu não estou fluindo. Minha vida parece a condução em que me encontro: anda-e-para. Aquele cansaço, a vontade de chegar, a esperança de engatar... e para. De novo. (...) Nada rima com angústia, penso de repente. An-gús-ti-a. Não pode ser à toa que nada rima com ela. Angústia é dor cega e sem par, à procura de ancoragem na palavra.

31/10/2010

Eu acordei cansada. No espelho, um rosto com olheiras me encarava sem sorrir. Eu bem sabia que a mistura de álcool, dançar muito, comer pouco e dormir mal não poderia dar em boa coisa. Ao caminhar até a cozinha percebi que minhas pernas latejavam e meu reflexo não estava bom. Tremia ao pegar o copo d'água. "Tudo bem", eu pensava, "a festa estava boa e hoje é dia de almoçar comida de mãe". Eu só queria saber, então, porque o rosto com olheiras não conseguia sorrir, se o cansaço era apenas cansaço, se o que eu sentia era somente o resultado de quem está aproveitando seus dezenove anos de vitalidade e pura energia. "Uma boa noite de sono em sua cama fofa e, pronto, você já estará bem outra vez". Por que, dentro de mim, algo se recusava a acreditar? O telefone interrompeu meus pensamentos, a carona havia chegado. Viagem tranquila, apenas alguns imprevistos. Família esperando, tudo dentro do que eu imaginava que seria. Esbocei um sorriso. Por que, meu Deus,

Sem dobras

"Eu quis te conhecer, mas tenho que aceitar: caberá ao nosso amor o eterno ou 'não dá'. Pode ser cruel a eternidade, eu ando em frente por sentir vontade." Janta, Marcelo Camelo Confesso que, quando fiquei sabendo que Marcelo Camelo estava namorando Mallu Magalhães, há uns anos atrás, minha reação foi de completo espanto. Eu achava estranhíssimo um homem de mais de trinta anos e uma garota de dezesseis conseguirem dividir seus mundos; não era somente a diferença de idade que me assustava, mas o fato de Mallu estar na adolescência, uma fase em que parece que tudo está mais maleável e mudando em uma velocidade diferente - e, outra confissão: ainda acho. Eu, com meus vinte e um anos, olhando para trás e vendo o quanto mudei nos últimos cinco, acho difícil me imaginar com aquela idade me interessando por um cara bem mais velho e, ainda mais, ele se interessando por mim. Minha cabecinha limitada, com suas concepções de mundo, que endireita a realidade em gavetas se