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Carta para minha vó (ou pedaços de vida e morte)

Ah, vó! Eu queria colocar minha história em linha reta, num desenrolar bonito e colorido. Mas ela fica num emaranhado do qual só apanho alguns pedaços. Na verdade os pedaços é que me apanham. Divinópolis virou um precipitado de lembranças grossas, que se acumulam em nuvem, carregam o céu. Quando venho aqui, não sei dizer se quem chove sou eu ou a cidade. A Morte, maiúscula, te levou daqui, e ela, que desabou meu edifício com tudo dentro, serviu para tornar visível a morte, minúscula e imperceptível a olhos menos atentos, que exerce seu ofício de cupim e corrói as paredes com paciência. Mas meus olhos sempre foram atentos. Desde antes de a senhora partir, Divinópolis me é nuvem carregada, porque aqui eu quase consigo tocar com a mão as mudanças que o tempo traz. Sempre temi a Morte maiúscula que a morte minúscula anunciava: o cachorro ficando cego, cada vez menos galinhas no quintal, o vizinho que era criança (eu juro que era!) tendo filho, a careca mais vistosa na cabeça do meu pai. No dia em que você foi embora fez um sol maravilhoso em sua homenagem, mas por dentro eu estava encharcada. Meus olhos não choveram nem um quinto do dilúvio. O dilúvio molhava cada um dos meus vinte anos, um a um, até chegar na minha gestação. Aquela Morte que chegava irrompendo em tudo não me apresentava apenas à sua morte, mas à minha, já que até então eu queria viver e vivia! numa vida para sempre. Depois disso eu não desejo mais viver para sempre, apesar de querer viver muito: nós somos destinados a amar a vida como quem não tem outra alternativa, e eu amo muito, amo tanto que às vezes o amor à vida me deixa exausta. Mas depois que a sua morte veio e dividiu a vida em falsa eternidade e depois da falsa eternidade, eu aceito a minha morte e espero que um dia venha. Eu entendi, na carne, que viver é acumular saudade. O que o cupim da morte desfaz, deposita no peito em nostalgia. À medida que vivemos, a saudade coloniza um pedaço novo do coração; é de se esperar, então, que um dia ele pare de funcionar, já que não sobra mais espaço para as outras funções. Espero morrer de velhice, como a senhora. Causa mortis: saudade generalizada. O coração foi o primeiro a parar, depois se alastrou para o corpo todo.

Vó, quando eu soube da notícia eu me lembro de perguntar, conscientemente: como eu posso estar viva? Era uma pergunta séria, uma dúvida mesmo. Talvez porque, como já disse, esse momento tenha tornado concreta não só a sua, mas a minha morte. No mesmo segundo em que me perguntava isso, me veio na cabeça a contagem de anos que eu teria pela frente sem a senhora (que, se tiver sorte, serão muitos), que eram muito mais do que eu tive com. Será que os anos vividos iriam se diluir na quantidade do porvir? Eu devo ter contado os anos um a um, em segundos, e isso tudo era demais para meu coração-cérebro-corpo: eu caí. Como disse, meu edifício veio ao chão. Deste tombo eu me levantei modificada para sempre, para o sempre que não viverei. À medida que me soerguia, surda e cega aos consolos da amiga, aos gritos da mãe, aos olhares do pai, como numa cena em câmera lenta, eu ia entendendo: a vida não cessa de continuar. Naquele momento isso era ultrajante, uma indelicadeza de Deus, do universo, do cosmos. A Morte lá, esmagando tudo, e a vida, inconveniente, aproveitando-se de cada mínimo espaço para mostrar que ela não iria parar. Francamente! Até o sol ousou nascer, a despeito da minha dor. Nesse dia em que nasci de novo, agora para uma vida mortal, eu entendi que a vida e a morte estão mais unidas do que eu conseguia passar para a consciência (ainda que eu pressentisse, principalmente quando visitava Divinópolis e tudo ameaçava chover).

Vó! Eu tinha medo de te esquecer. De esquecer sua voz, seu jeito, suas palavras únicas que os filhos e netos acabaram não pegando para si. É que não há morte na morte, vó. Só há morte no esquecimento. E eu tinha medo de que a senhora morresse. Tinha medo de que o vivido se raleasse no tanto de coisa que ainda tenho para viver. Mas um dia, não sei como ou porque (as evidências da vida dispensam maiores explicâncias) eu entendi que, mesmo que eu tenha um piripaque que bagunce a minha cabeça, meu corpo todo é memória da senhora. Eu sou o que eu fui, mesmo que venha a ser tantas outras. Isso pode parecer um consolo barato que arranjei para viver, mas é tão profundo e claro que acho que até o modo como escolho as palavras agora ou fito as minhas mãos que escrevem carregam no gesto a sua vida. A senhora ficou nas minhas retinas quando vejo o mundo. E ainda há tanto para ver.

Vó, é de Divinópolis que escrevo esta carta, e estou prestes a seguir para a capital. Fecho os olhos e por um minuto sinto suas mãos fazendo trancinhas no meu rabo de cavalo, instantes antes de apanhar uma rosa para eu levar para a professora. Abro os olhos e sou adulta. São essas precipitações de lembranças que me acometem quando venho aqui. É difícil viver com uma nuvem carregada no peito. Mas cumpro a sina. Escrevo, talvez, para poder gotejá-la um pouco. Tenho medo, vó. Isso de começar a ser adulta me assusta. A sua morte me deixou com a alma um pouco mais grossa, feito suas mãos, calejadas de vida e tempo, mas ainda sou tão criança, vó! Tenho os mesmos sonhos infantis. Só pego no sono fantasiando. Sabe como me vejo agora? Olhando para um enorme campo de terra, como se fosse minha vida. A olhos menos atentos, não há nada, apenas um enorme campo de terra. Mas eu sei que há muitas coisas brotando sem serem vistas. Não é tempo de colheita. É de plantar. Me abençoa daí, vó? A primeira rosa que nascer não vai ser para a professora, mas para a senhora. Agora eu preciso ir, depois lhe escrevo mais. A senhora não sabia ler, mas desconfio de que no lugar em que se encontra o amor seja a língua materna. E no amor eu te encontro com todas as forças da minha vida que não cessa de continuar. 

(O dia anoitece nublado: acho que vou chover)

Com todo o meu coração (que já é um tanto mais saudade que coração),

Marcela.

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