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speechless

23 de Janeiro de 2009. Creio que muitos, se não todos, aqui, se lembram desse dia e tem alguma história para contar sobre o momento em que passamos no vestibular da UFMG. Eu tenho a minha. Estava saindo do consultório de um oftalmologista, com as pupilas dilatadas, e recebo um telefonema de uma amiga me dizendo de uma provável lista. Saí correndo, em um dia de sol castigando meus olhos, à procura de um computador que confirmasse aquela informação. Eu não me dava conta, naquele momento, que o que vivia era uma bela metáfora do que estava por vir: a vida inundando de luz a alma com as pupilas dilatadas. O olho se contrai, se esforça para enxergar, delinear o mundo, mas a luz é maior. Hoje, cinco anos depois, me sinto da mesma forma. Em um esforço por delinear o sentimento que me toma, sinto a luz me arrebatar. Talvez porque a vivência seja muito parecida com a daquele dia: o fim e o começo, unidos, belos, provocantes. Qual a diferença, então, do momento de antes para o de agora? O que mora no caminho do meio? É sobre esse caminho, com o esforço de quem contrai os olhos, que pretendo falar agora.

Nós nos encontramos. Cada um trazendo a sua busca, sendo a sua busca, foi parar, sabe-se lá por que, junto a outras 65, diferentes e iguais. Psicologia. Ciência do homem? Estudo da mente? Há quem ache que somos como “médicos de doidos” ou reveladores de pensamentos. Mistério. Todos nós fomos movidos por um convite misterioso que o ser humano é. O que talvez não soubéssemos, ainda, é que quanto mais entendêssemos, dissecássemos, apreendêssemos o ser humano, mais misterioso ele iria nos apresentar. A provocação de saber esbarraria na inquietude de tão pouco continuar sabendo. Mas estou me adiantando. Voltemos ao início. Nós nos encontramos. Alguns vindos de outras cidades, estados, outros cursos. Cada um carregando aquilo que é e o desejo que tem de encontrar um lugar que seja seu.

A Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas começava a ganhar vida para nós, um prédio com alma, coração e história. Hoje é como um templo que abriga nossos sentimentos e lembranças. E quantos são eles! A ansiedade pelo trote, pelo primeiro contato com o cadáver da aula de anatomia, com o rato na aula de Análise Experimental do Comportamento... com o primeiro paciente. A angústia de escolher de novo e sempre a Psicologia, com suas várias áreas de atuação, linhas de pensamento, formas de conhecer. Os vários sentimentos por professores que viraram lendas entre nós, as dúvidas, a alegria das certezas. E aquelas pequenas miudezas do cotidiano, tão particulares, que resgatam toda a beleza de termos estado aqui. Uma frase escrita no banheiro, o caminho do bandejão, um gato que nos assustava às sete da manhã. O sofá do Capsi que mais parecia um convite para chegarmos atrasados à aula. A expulsão da primeira festa da turma. Os aniversários, as viagens, os bares, a copa do mundo, ou qualquer outro pretexto para estarmos juntos de quem não mais nos imaginávamos sem. Lembranças simples, que, por serem assim, não pesam no coração e serão facilmente carregadas por aí. E então, anos adiante, quando estivermos encontrando outras pessoas, fabricando novas memórias, no meio de um café, assistindo a um filme, olhando a lua nascer despretensiosa no céu, um gosto agridoce de saudade subitamente virá à boca. E será essa sutil e grandiosa manifestação da vida, nos apanhando distraídos, que resgatará, na verdade, a beleza de termos continuado aqui. Porque nós seremos, enquanto vivermos, tudo isso que, hoje, se parece com um fim.

Mas eu ainda quero voltar, de novo, ao fato de que nós nos encontramos. E não só uns com os outros, com as outras 65 buscas. Nós só estamos aqui porque, continuamente, nos encontramos com alguém. Uma força deste e de outro mundo, que precisa inteiramente de nós mas nos transcende, chamada: encontro. É aquele momento em que vem a certeza: “Então é por isso que vale a pena...”.  Encontro verdadeiro é quase redundância se, tudo que é menos que verdade, é desencontro. Nós só viemos ao mundo porque alguém nos recebeu, só estamos aqui, carregando a solidão de termos um caminho próprio, porque fomos, porque somos acompanhados.

Um encontro, também, conosco. Afinal, como passar impune por um curso que se propõe a mergulhar no que é humano? Um encontro com as dores, fragilidades, limitações, com o afeto, com a paciência. Com a angústia sem volta de um saber que pulsa, vivo, em nós, carregado por um não-saber. Impossível calcular a dimensão do que se alargou aqui dentro: fomos permanentemente modificados. Mas eu insisto: nós só pudemos sustentar essa mudança porque existe alguém que acompanha o que nós somos enquanto vamos sendo.

Demoro-me neste ponto por dois motivos: primeiro, porque tenho a leve e doce impressão de que as lembranças que mais nos apanharão distraídos e resgatarão a beleza desses anos são as dos encontros que tivemos aqui. Desde aqueles com pessoas que convivemos diariamente até com aquelas que não trocamos palavras. Segundo, porque nem ciência do homem, estudo da mente, medicina de doidos, se aconchegam em mim. Eu acho que psicólogos são, na verdade, artesãos do encontro, tecendo, fio a fio, a vida que daí brota. É que a partir disso, as teorias são ótimas ferramentas, mas é de um encontro que tudo gera, tudo nasce. E não porque adquirimos um super poder e revelamos pensamentos, nada disso. Mas devido ao fato de que, como humanos, sabemos a dor de um desencontro, e porque a gratidão de termos sido encontrados nos torna responsáveis. Não podemos passar ilesos por uma vida humana. O mundo está urgente por encontros. Por isso, meus amigos, eu espero e peço que a luz do saber, do sucesso ou da dor, a luz do desconhecido que hoje une fim e começo, por mais que nos arrebate, não nos cegue, não ofusque a simplicidade dessa constatação. Peço que, onde quer que estejamos nessas tantas áreas da Psicologia, ou fora dela, por mais que às vezes precisemos contrair os olhos, exista no horizonte a vontade do contato verdadeiramente humano. Porque aí eu sei que estaremos em nossos lugares, que seremos aquilo a que fomos destinados: uns com os outros, com os tantos outros do caminho.



13 de fevereiro de 2014. O dia em que eu talvez tenha falado demais sobre o que a palavra não alcança. Mas eu não podia deixar de vir, em nome da turma, agradecer por toda essa luz. E obrigada a todos, encontros nossos. Boa noite.

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