De todas as coisas incompreensíveis que existem, a morte é a maior delas. É natural, acontece com tudo que um dia nasce, mas não deixa de abalar a ordem da vida de uma maneira inadmissível. A morte é um absurdo. E é por isso que vivemos em uma falsa eternidade: se formos pensar todo o tempo que essa senhora impiedosa sempre chega e que, mais cedo ou mais tarde, iremos perder alguém que amamos, nós paramos, enlouquecemos, ou seja lá o que for. Mas então ela chega, absurdamente. Em todos os dias de nossa vida estamos morando dentro de um falso lugar eterno para que, em um desses dias como tantos outros, sejamos obrigados a encarar que esse lugar não existe.
A vida é muito, a vida é bem mais que um amontoado de órgãos que, juntos, fazem algum sentido. Então chega a morte e transforma a vida nisso. Como aceitar que ela possa caber dentro de uma caixa? Perder alguém é uma insuportável transgressão. A vida são os discos preferidos, o jeito de arrastar os chinelos, o modo como se coloca os travesseiros na cama. Daí vem a morte e estupra tudo isso, silencia a canção tão bonita que sabemos de cor. E o silêncio grita, um brado ensurdecedor. Porque ficam os discos, ficam os chinelos, encontramos os travesseiros na cama exatamente como foram deixados. Tudo é vida onde a vida não está. Não faz sentido existir aquela ausência tão nítida quanto uma presença. Por isso, perder alguém é muito mais que uma tristeza, muito mais que uma dor dilacerante: é de desalinhar o universo, de fazer o mundo parar de girar. E ele para.
Vivemos como se existissem dois mundos: um particular, e outro no qual estamos inseridos; girando juntos. O mundo particular é sustentado por várias partes que, juntas, conseguem fazê-lo rodar, dão força e sentido para que ele consiga acompanhar o grande-mundo que também gira. Todos os elementos, harmonicamente, não são só importantes quanto essenciais para que tudo funcione. Então aparece a morte e estraga esse "tudo": leva um dos pilares sustentadores e faz o mundo parar. Os "nunca mais" que ela traz consigo dão pane no sistema. Nunca mais ouvir a voz doce chamando o sol de "sole", ou escutá-la tentando todos os nomes até chegar ao seu; nunca mais tomar a melhor sopa que já existiu, com aquele tanto de abóbora e amor que você sempre adorou; nunca mais dizer "Arrume esse pescoço, vá dormir na cama!" e escutar um "Ih, 'num tô durmino'", nunca mais ter que explicar que a mocinha não vai morrer na novela, nunca mais abraçar, nunca mais enxergar o sorriso sem dentes capaz de iluminar todas as vidas que passavam por perto, nunca mais ter novas palavras sábias de alguém que nem sabia escrevê-las. Nunca mais conjugar o verbo no presente ou no futuro. Não há mundo que continue funcionando depois disso.
O problema (e, depois, solução) é que, também absurdamente, o mundo no qual nosso mundo parado se encontra continua girando como sempre. Os ponteiros do relógio continuam escorregando, o sol ainda nasce e se põe, os bares e escolas ainda estão abertos, as pessoas continuam conversando sobre política e futebol. E aí você tem que arrumar uma maneira de existir dentro dele, com seu mundo em pane, com tudo imóvel. A morte te leva para o "limbo da vida": você não morre, porque há um mundo que gira, mas também não vive, porque esse mundo não é exatamente o seu. Você se sente flutuando, em um estreito lugar da existência em que nunca esteve antes. Você come, dorme, escova os dentes, até ri de alguma piada, porque isso tudo faz parte do mundo girante, mas você não se sente direito, você não se localiza. Por isso é que nada consola e nada distrai... é preciso que o seu mundo volte a girar para que tudo o que for do mundo grande possa chegar até você, consonante.
A morte veio e acertou um dos pilares sustentadores da minha vida. Os nunca mais em questão são para a pessoa mais encantadora que eu já conheci. Aos 84 anos de vida e vitalidade, sem sofrer muito e em um dia azul bonito, na ordem natural do mundo, minha avó se foi em paz; a paz de alguém que viveu para os outros, que deixou um pedacinho do seu enorme coração em cada coração que, agora, está todo despedaçado. Eu sei que tudo isso um dia vai me consolar, e, a dádiva de ter vivido 20 anos sob o calor e proteção desse meu "sole" particular, é algo pelo qual vou viver até o fim agradecendo. Mas, agora, não. Hoje, conceber que ela não estará no 21º aniversário me esmaga. Agora a morte não é uma passagem bonita e a prova de uma vida maravilhosa que cumpriu seu papel aqui na Terra e todo esse clichê necessário para que não enlouqueçamos. A morte é algo que fez parar o meu mundo e o resto do mundo girar sem sentido algum. Eu sei que, aos poucos, as partes da minha vida vão arrumando maneiras de fazer tudo rodar outra vez, nunca da mesma forma, mas de um jeito que me faça aceitar e contar essa história com a saudade boa de que tanto ouvimos falar, mas, hoje, eu só enxergo o absurdo.
E eu aceito essa espera, por ela. Existo no limbo da vida porque eu ainda quero poder viver de novo, espelhando-me em tudo que eu aprendi com essa senhora-encanto, com sua força, com seu amor sem limites, com a doação completa de seu ser. Um dia eu conseguirei fazer os mundos se encontrarem outra vez porque a força-motriz do meu mundo não se foi/vai com a morte. O amor, por ela, e por todas as outras partes que me sustentam, é maior e muito mais poderoso que qualquer coisa incompreensível dessa vida. E isso eu posso compreender. Com você, vó, por você.
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