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Num único jato

(...não são as pessoas. Não sou eu. É o cheiro de verdade que fica quando a gente se abraça e que continua em mim quando elas partem. Tenho farejado a verdade feito um cachorro louco, e a vida tem feito minhas narinas vibrarem atentas ao menor vestígio dela. Se não encontra, volta amuado ou range os dentes, mas não fica. Estou cada vez mais intolerante a inverdades. Não sou eu. Não são as pessoas. É algo além de nós. É esse algo além de nós que entrelaça nossos fios na costura do invisível. Por que é que o homem resolveu brincar de costurar encontros com fios tão visíveis quanto frágeis, que se desfazem ao menor contato com o mais profundo do outro? Quem foi que disse a ele que ele era capaz de fabricar o infabricável? Ninguém entende que preciso desse cheiro quase como preciso respirar. Ninguém entende que preciso abraçar o invisível. Não há pessoa no mundo que consiga dimensionar a minha necessidade de ser amor antes, durante e depois. Nenhuma criatura que saiba que o que sustenta o meu corpo, carnal e irracional como todo corpo, é uma entrega lúcida ao cheiro da verdade. O cachorro segue seu instinto, eu sigo essa lucidez que me é tão preciosa quanto pesada. Pois hoje eu preferia ser um cachorro. Um cão no mundo cão me parece mais coerente. Esse mundo de homens, hoje, é só pedra, não poesia. Amanhã, Deus, me devolva a poesia, mas, hoje, não. Hoje deixa eu chorar pela crueza da pedra, pela incompreensão da pedra, porque, no fim, ninguém entende. Nunca me senti tão estrangeira. Nem tão arrogante por achar que a minha dor é só minha. Eu que sou feita de tudo o que é feito os outros. Deixa eu me perdoar por errar, hoje, Deus. Eu que procuro a perfeição e sou menos livre por isso. Que me esqueço de que no mundo perfeito não há o que ser dito. Que me assusto com o papel em branco pela liberdade a que ele convida e hoje estou vomitando estas palavras sem me preocupar com a poesia que me alimenta desde que nasci, e que está, inocente, no meio de tudo de tóxico que precisa sair. Não deixa a poesia ir junto do meu vômito! Vomitar não é bonito, mas é tão necessário às vezes quanto respirar o cheiro da verdade. Estou cansada (queria escrever "tô", por pura liberdade, mas o desejo de não errar nunca me prendeu de novo). Na verdade minha esperança é que está cansada, mas esperança cansada não deixa de ser esperança. Impossível que eu ou qualquer outro homem deixe de ser esperança mesmo quando está desesperançando. Teu toque de Mestre. Ah! Deus! Eu sei que minha esperança só descansa em Ti, e amanhã, quando me devolveres a poesia, estarei constrangida por não me ter permitido ser consolada. Mas hoje eu só quero vomitar. Eu que sempre resisti, sem querer, a vômitos, mesmo que fossem a única salvação para o mal estar que fazia com que eu tremesse toda. Dedo na garganta nunca adiantou. Sempre veio quando tinha que vir. Está vindo. Será que agora vomito toda a inverdade que fui obrigada a engolir? Os silêncios que desafirmavam toda a minha entrega, o meu amor? Os desolhares que recebi, dizendo que minha verdade era uma mentira enlouquecida? Ninguém entende que a minha passividade, na verdade, é uma espera muito ativa. Eu não quero me render à pedra, eu não quero ter que procurar o in-procurável: eu só quero me deixar achar, achar a verdade que Tu é quem dá. Que Tu é quem És. Ninguém entende que eu quero amar o outro, mas o outro mesmo, não a minha imagem nele. Não o bem que ele me causa. Quero amar até o mal porque assim o amo inteiro. Não quero paliativos, medidas provisórias. Quero a crueza desse aguentar que na verdade me conduz a Ti. Ninguém entende que eu quero Te encontrar no outro, Te amar no outro. Me dá paz nessa espera solitária, Deus. Não sou eu. Não são as pessoas. É esse desejo de amor infinito que me fizestes herdar ao nascer. Me perdoa. Pela arrogância. Por me revoltar contra a pedra que também pertence ao Teu reino. Me perdoa por não saber o que fazer com a minha solidão quando Tu sempre ofertas companhia. Há dias inconsoláveis. Estes me constrangem perante a Ti.)

A menina mirou o espelho. A cabeça latejava como quem tivesse perdido uma parte de si num único jato. Ainda tremia, mas no lugar do sal da boca experimentou o alívio que há dias ninguém lhe dava.

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