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2ª carta para a minha avó (ou pedaços de vida e morte)


   O que faz de um sorriso um sorriso não é a simetria da dentição ou sua branquetude escovada. É algo além dele próprio. Iluminura que a vida deixa de rastro num rosto. Isto aprendi com a senhora, vó, com seus olhos gargalhantes. É muito mais difícil sorrir sem dentes porque aí não dá pra dissimular muita coisa. A transparência o revela em sua essência. Pois acontece que toda santa vez que atendo uma paciente banguela, vó, a saudade me abraça. Saudade tem braços delicados mas aperta com valentia. Moça feita de passado mas que tem pacto é com o presente. Se a saudade falasse de coisas idas, ao olhar para aquelas senhoras hoje eu não reconheceria o seu sorriso. Nada de significativo, de fato, se tornaria nosso. Triste, não é? Ainda bem que ela existe!
    Pois a saudade tem me contado algumas coisas. Uma delas é que a senhora fez um grandecíssimo trabalho. Eu não sei o que você colocou no leite dos seus filhos, naquela pobreza desgentil da roça, que nutriu e fez crescer tanto o coração deles. São espaçosos, confortáveis e agigantados os músculos-batedores daqueles três. Passou também a fervura do sangue, a curteza do pavio, porque brigam que só! Mas doam um amor tão nobre e generoso que vi em poucas esquinas da vida. Minha dinha até hoje me lembra de casacos e guarda-chuvas, minha mãe vai na igreja rezar pra paciente meu. Introduzo isso, vó, pra te contar que atravesso um dos momentos mais agudos por que já passei. Tem sempre uma penumbra de entardecer dominical nos meus dias. Não sei se sou boa nessa história de ser escutadeira das pessoas, vó. Dá receio de ouvir mais o barulho da minha mente tagarela-querendo-acertar-sempre-na-sua-análise-arrogante-do-mundo do que os sons e os silêncios daqueles que precisam falar; de tentar calcular mais a simetria da dentição que enxergar o sorriso. A senhora pode estar se perguntando o que essas minhas dificuldades tem de relação com o que a saudade vem me contar. Pois bem. Pedindo licença pela minha pouca idade e experiência, posso dizer que já percebi e conheci muitos tons de sofrimento. Carrego uma pequena multidão comigo, tenho uma solidão povoada. Percebo que a vida é dura e esfola sem gentileza. O que vejo naqueles corredores são pessoas que só não matam um leão por dia porque vão além: convivem com ele. Suportam seu rugido, encaram o suspense de suas presas. Matar um leão é obra do animalesco instinto, tolerá-lo é sofisticada humanidade. E é dessa finura humana que falo quando me refiro ao legado que a senhora deixou e que chega até a mim. Talvez eu tenha sido tão amada e vivido por um tempo a ilusão de imortalidade para poder esfolar os ouvidos e os olhos na dureza da morte esperando, ansiando pela iluminura que a vida deixa de rastro. Sutilezas que sussurram no meio da barulheira dos leões.
  Sinto que sei cada vez menos, entendo cada vez menos os caminhos que a vida escolhe, mas minhas pernas avançam como que cumprindo um destino. É a minha salvação perceber que quando me apequeno, me acovardo e recuo diante de tudo, aquilo que foi inegociavelmente me dado e que é maior que eu me sustenta e me carrega por aí. Obrigada por isso, vó. Se eu não arredo o pé da realidade, a "culpa" também é da senhora. Agora preciso ir, mas continuarei lhe escrevendo, principalmente dentro dos abraços da saudade.

Com todo o meu coração,
Marcela.

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