(Quando eu era pequena, certa vez, me deparei com essas lembranças que entregam em missa de sétimo dia. Era uma família na foto, com um trecho da "Canção da América", do Milton Nascimento. Minha mãe me explicou que eram conhecidos dela, e morreram, todos, em um acidente. Aquela informação toda custou a entrar na minha cabeça. Aquilo destrancou a porta para a tristeza do mundo. O impacto daquele momento dura até hoje, porque quando escuto que amigo é coisa pra se guardar do lado esquerdo do peito, a voz pungente do Milton vai direto nessa chave que abre a porta da tristeza.
Quando criança, também, o momento da missa que mais gostava era o de oferecer a "paz de Cristo". O estranho rosto ao lado se transformava em familiar exatamente nessa hora. Estávamos a um sorriso de nos tornar irmãos. Até hoje, por causa disso, essa hora é a que mais me agrada: o alcançar concreto da Palavra proferida. Por que estou te contando essas histórias, se você não me perguntou nada disso? Porque eu gostaria que você entendesse o que sou também, já que você contou a sua vida com tanta disponibilidade para mim, que era estranha a um sorriso atrás.
O que você não sabe é que desde que comecei a trabalhar nesse hospital, meu coração não tem morada fixa no peito, o tal lado esquerdo de que Milton falou. Ele escorrega, desce uns degraus, sobe outros. Cada nova vez que entro nos quartos eu torço para que ele não me deixe em apuros na hora que mais preciso dele. Inaprisionável esse meu coração. O lavar das mãos, padrão de segurança, acabou virando os segundos que ganho na espera de que ele volte para o lugar.
O que não posso te contar é que desde que comecei a conversar com você meu coração se mostrou muito mais frágil do que eu supunha. Te ver sempre sozinha me doía muito fundo. A sua força de vontade de viver constrangia a minha fraqueza. Sua gratidão ilimitada acordou minha revolta. Quando você apertou a minha mão para retirarem seu sangue, e ele não saía, eu queria poder te passar o meu por aquele toque. Quão tosca e ridícula era a minha mão. Você nem desconfia que um dia, depois de falar com você, eu desabei em um banco qualquer. Um choro incontido de quem acumulou tanto em um só coração, e esse coração pesou a ponto de não caber mais em lugar nenhum do corpo. Ver e ouvir tanto seria insuportável se não pudéssemos jorrar. Eu jorrei. De dor, de fúria, de vontade de entender porque eu era saudável e você não.
Quando me contaram que seu coração, tão jovem, parou, o meu ficou tão pequeno que sumiu por alguns dias. Fiquei trancada do lado de fora, na tristeza do mundo a que fui apresentada há muitos anos. Você não sabe que eu quis desistir nessa hora. Odiei ter um coração, tão vulnerável, tão não meu. Estava afastada da paz de Cristo. Me lembrei que na última vez que te vi você estava tão esperançosa que me entregou essa esperança. Eu não queria ter que ficar com ela sozinha.
Hoje falo com o coração de volta ao lugar. Consigo pensar em você e nos seus sonhos abortados sem que ele despenque alguns centímetros. Em você e em todos aqueles que vi anoitecer bem no meio do meu dia. Você me disse, surpresa, que não sabia que fazia diferença na vida de alguém, e eu pude confirmar que sim, momentos antes de apertarmos as mãos como fazíamos toda vez. Como alguém pode viver sem saber que sua vida importa? É por esse sim que vou continuar tentando suportar todos os nãos. Não sei se vou conseguir, mas prometo me lembrar da esperança que você me entregou antes de pensar em desistir.)
- Eu me envolvo sim, mas poder ajudar de alguma forma faz tudo isso ter sentido..., foi o que respondi para ela, falando mesmo era para mim.
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