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31/10/2010

Eu acordei cansada. No espelho, um rosto com olheiras me encarava sem sorrir. Eu bem sabia que a mistura de álcool, dançar muito, comer pouco e dormir mal não poderia dar em boa coisa. Ao caminhar até a cozinha percebi que minhas pernas latejavam e meu reflexo não estava bom. Tremia ao pegar o copo d'água. "Tudo bem", eu pensava, "a festa estava boa e hoje é dia de almoçar comida de mãe". Eu só queria saber, então, porque o rosto com olheiras não conseguia sorrir, se o cansaço era apenas cansaço, se o que eu sentia era somente o resultado de quem está aproveitando seus dezenove anos de vitalidade e pura energia. "Uma boa noite de sono em sua cama fofa e, pronto, você já estará bem outra vez". Por que, dentro de mim, algo se recusava a acreditar? O telefone interrompeu meus pensamentos, a carona havia chegado. Viagem tranquila, apenas alguns imprevistos. Família esperando, tudo dentro do que eu imaginava que seria. Esbocei um sorriso. Por que, meu Deus, esse sorriso era fraco, teatral? Foi então que eu me dei conta.

É porque eu acordei cansada. Um cansaço além do corpo, desses que atravessam a superfície e tocam lá no fundo. Era minha alma que suspirava. E, se eu não sabia o porquê, é simplesmente por fugir da resposta. No fim, retirando todas as camadas e peles e cascas que camuflavam o que eu sentia, tudo o que eram sobras e deixando o centro, só restava aquilo de que eu tentava escapar: minha solidão. Tão íntima, que a chamo assim: minha. E essa "minha solidão" me deixa exausta, com olheiras maiores do que se pode notar, porque ela não dorme nunca. Tão egoísta, não gosta de gente, com todas as suas perguntas e insinuações e conselhos. Incoveniente, quer estar em todos os lugares... até no Rio de Janeiro, na cidade maravilhosa, com amigos maravilhosos, disfarçada sob o sol de uma privamera que chegava trazendo cores, vendo tudo em branco e preto. Ela corta o clima, atrapalha a festa. A de ontem, por sinal, nem estava assim tão boa, pois eu via minha companheira em cada bebida que eu comprava para me animar, em cada tentativa de flerte ou aproximação de pessoas com seus vocabulários manjados. Paradoxal, eu a sinto mais perto quando estou com outras pessoas.

Como se não bastasse, minha solidão embaça as vistas, e isso me cansa também: não saber o que eu de fato enxergo, e o que não é puro truque do meu estar-só; o quanto tenho de miopia e, sendo assim, o quanto preciso corrigi-la. Acho que ela aprendeu com a paixão - que talvez também nos deixe míopes... mas essa já é outra história. Ah!, como ela gosta de me enganar. Com fantasias e máscaras, consegue se disfarçar de outras dores, e - incrível! - até se finge de alegria. É também temperamental: tem dias que se impõe, pomposa e rainha, gosta ser maior que eu, em outros, é boa moça: fica quetinha, sem fazer barulho... só por um breve descuido, às vezes se deixa escapar em suspiro.

Mas está sempre lá, aqui, comigo. Espreitando meus passos, invadindo minhas músicas, bisbilhotando meus livros. Às vezes consigo fazê-la dormir, quase sempre quando me perco - ou me acho - em poesia, versos bonitos, quando me entupo de Caio Fernando Abreu - santo remédio. No fim, ela é só minha, e dela também tiro lá minhas boas vivências... mesmo que a solidão me queira só para ela, o meu estar-comigo me deixa gostar mais das pessoas. Querer mais as pessoas. Entender mais as pessoas. Talvez minha solidão sirva exatamente para isso: para que eu não tenha a mínima vontade de ser só. Eu não sei o quão estranho isso é, também me canso de achar respostas. Escrevo para, pelo menos, poder formular as perguntas. E isso me faz bem. Escrever também engana a solidão, acabo de descobrir.

Minha perna ainda dói, mas é uma dor se despedindo, lembrando enquanto passa que meu corpo de dezenove anos se recupera. "Minha alma também se recupera, enfim", penso de repente. Por um momento me esqueço de que acordei cansada. E o rosto com olheiras no espelho finalmente consegue sorrir.

Comentários

  1. Eu sou sua fã, você sabe disso, né?

    =)

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  2. uau! que bonita sua sinceridade!.. neim sei o que falar pq ontem escrevi algo parecido com o seu e me gastei em falar em solidão. Impressionante a similaridade de sentimento e idéias que tivemos no mesmo dia. Olha lá dps no boteco das idéias meu primeiro post.
    Beijos

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  3. PQP. Você escreve muito bem.
    Um amigo meu, músico e compositor (de início de carreira), me disse uma vez que escreve as coisas mais bonitas quando se sente profundamente triste, e aí a tristeza se transforma em beleza. É, paradoxo.

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