"A explicação rompe das nuvens,
das águas, das mais vagas circunstâncias:
Não sou eu, sou o Outro
que em mim procurava seu destino."
"Psicótico crônico", disse o médico. "Sem sintomas positivos. Abra o livro no capítulo X e você verá sua descrição perfeita". "É muito bonito atendê-lo", eu disse, de repente, com a voz tímida. "É, é muito interessante o caso dele. É uma aula de psicopatologia". "Não", eu quis dizer, mas não disse. "Não é uma aula de psicopatologia. É uma aula de humanidade, de humanice. Ele parece ter saído de um filme de Almodóvar. Ele não está naquele livro de doenças. Ele está em mim, ele está em você, em todas as vezes que sofremos tanto que gostaríamos de poder bater a cabeça no portão para deixar de lembrar. Você entende? Você...", meu pensamento raleou e se dissolveu com o chamado da realidade: 13h05, tenho qua-tro-mi-nu-tos-parabateropontoeletrônicoeentrarantesque. Antes que?
18h09. Volto para casa pensando no meu personagem de Almodóvar. Eu queria que ele a perdoasse. Que não precisasse bater mais a cabeça. Eu queria que ele fosse feliz. Suspiro. Meu pensamento corre solto e vai parar na minha infância. A imagem é turva mas a cena não se apaga: quando eu passava pelo estirão de crescimento do corpo, minhas pernas doíam muito. A qualquer hora da noite, meu pai se levantava, pegava um óleo e as massageava. A dor cessava - não sei se pelo óleo, pela massagem ou pelo sentimento que escorria por aqueles dedos. Olho para a barra de ferro sob o teto do ônibus em que apoio as mãos. 1,73m: posso alcançá-la com folga. Quem me vê segurando-a não imagina quanto amor sustenta a minha altura.
Sento-me, finalmente. De novo meu pensamento corre. Se não presto atenção no caminho e não sei localizar onde estou na grande capital, é porque as ruas da minha cabeça me levam a outros lugares. A cena de agora é de alguns anos mais tarde: minha avó chegara trazendo alguma comida que ganhara, e dividiu igualmente entre as três netas. Quando dei por mim, ela não ficou com pedaço algum. "A senhora não vai comer?", indaguei. "Mi'a fi'a, quando ocêis comi, é como si eu tivesse cumeno". A saudade que eu sinto dela perfura a carne e atinge os ossos. Quem me vê sentada não imagina quanta dor já fez minhas pernas vacilarem. E também não imagina que o amor continua, indevorável, me fazendo andar.
Passo hoje pelo estirão de crescimento da alma. Entre pontos eletrônicos, engarrafamentos e outras adultices, fica em mim uma teimosia quase infantil de resistir a tudo isso. Eu não sou mais eu. Sou o homem que bate a cabeça para esquecer. Sou a mulher que só não se corta quando está com alguém. O menino que acha que é Deus para suportar sua pequenez. Eu sou essa pequenez. Sou os olhares de desespero que recebo, e a esperança que escorre deles. Eu que pensava que em algum momento do curso passaria de "não-psicóloga" a "psicóloga" e me transformaria em uma super-heroína capaz de resolver os problemas do mundo, sou apenas uma menina sofrendo as dores da alma que se alarga em uma velocidade maior do que pode assimilar. Sou alguém que precisa ser salva todos os dias da loucura do mundo (que fica dos portões para fora do hospital psiquiátrico).
Desço do ônibus após 1h15. Estou cansada. Pensar na falta de dinheiro e na fila do supermercado me estressa. Mas algo em mim se conserva puro, relaxado, vivo e tranquilo quanto o sono de um recém-nascido. A angústia bordeia um amor que persiste. Quase como uma responsabilidade inegociável, o olhar que recebi e recebo me deixa em dívida com aqueles que sofrem pela ausência dele. Um ano de trabalho no hospital para ver que o que mais esquizofreniza é a falta de amor. Mas isso nenhum manual de psicopatologia noticia.
Não há como escapar. A gratidão me sustenta, me deixa vigilante, dá força às minhas pernas crescidas e aos meus olhos, ávidos pela beleza que encontrarei amanhã de novo. Só assim posso cerrá-los e finalmente adormecer, entregue. No limbo entre o sono e a vigília, quase deliro... Ao longe, há uma menina que ainda não cresceu, que sou eu, mas ao mesmo tempo não. "Eu queria esquecer...", alguém diz a ela. Acordo e fito o escuro do meu quarto. "Isso você não pode fazer", eu respondo em pensamento, "mas eu vou ficar aqui na espera de que você suporte lembrar...". O sono vence e eu me rendo à noite, aguardando a vida recomeçar.
Passo hoje pelo estirão de crescimento da alma. Entre pontos eletrônicos, engarrafamentos e outras adultices, fica em mim uma teimosia quase infantil de resistir a tudo isso. Eu não sou mais eu. Sou o homem que bate a cabeça para esquecer. Sou a mulher que só não se corta quando está com alguém. O menino que acha que é Deus para suportar sua pequenez. Eu sou essa pequenez. Sou os olhares de desespero que recebo, e a esperança que escorre deles. Eu que pensava que em algum momento do curso passaria de "não-psicóloga" a "psicóloga" e me transformaria em uma super-heroína capaz de resolver os problemas do mundo, sou apenas uma menina sofrendo as dores da alma que se alarga em uma velocidade maior do que pode assimilar. Sou alguém que precisa ser salva todos os dias da loucura do mundo (que fica dos portões para fora do hospital psiquiátrico).
Desço do ônibus após 1h15. Estou cansada. Pensar na falta de dinheiro e na fila do supermercado me estressa. Mas algo em mim se conserva puro, relaxado, vivo e tranquilo quanto o sono de um recém-nascido. A angústia bordeia um amor que persiste. Quase como uma responsabilidade inegociável, o olhar que recebi e recebo me deixa em dívida com aqueles que sofrem pela ausência dele. Um ano de trabalho no hospital para ver que o que mais esquizofreniza é a falta de amor. Mas isso nenhum manual de psicopatologia noticia.
Não há como escapar. A gratidão me sustenta, me deixa vigilante, dá força às minhas pernas crescidas e aos meus olhos, ávidos pela beleza que encontrarei amanhã de novo. Só assim posso cerrá-los e finalmente adormecer, entregue. No limbo entre o sono e a vigília, quase deliro... Ao longe, há uma menina que ainda não cresceu, que sou eu, mas ao mesmo tempo não. "Eu queria esquecer...", alguém diz a ela. Acordo e fito o escuro do meu quarto. "Isso você não pode fazer", eu respondo em pensamento, "mas eu vou ficar aqui na espera de que você suporte lembrar...". O sono vence e eu me rendo à noite, aguardando a vida recomeçar.
Quando eu crescer quero muito me encontrar na profissão como vc fez, Mar.
ResponderExcluirCerteza que desse jeito vc vai muito mais longe do que vc jamais imaginou.
Obrigada por seu carinho e a fé que você sempre deposita em mim, Tainá. Isso me dá força para quando eu duvido, quando "me perco" na profissão... :)
ResponderExcluirColoco em você toda a minha fé também!
Obrigada.
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