Às vezes eu queria que
nada tivesse acontecido. Que este instante fosse uma folha em branco em que
pudesse escrever qualquer outra coisa que não esta história. Mas ele é todo
feito de linhas – tortas ou não, riscos toscos, barulheira estética de traços sobrepostos,
quase não dá para ler. Marcas. Muitas. Profundas. Eu ouvi demais, vi demais, e
hoje carrego uma lucidez do que ficou que é ruim – apesar da confusão: paradoxo
indigesto. Descobri que se águas passadas não fazem mover os moinhos, podem
danificá-los permanentemente. E eu sou como um moinho que perdeu uma de suas
hélices e, aos poucos, aprendeu a entrar no ritmo sem ela, mas Deus do céu!
como por vezes eu queria a hélice perdida por uma realidade que me inundou.
Mas na maior parte do
tempo, não, não desejo que esta história não fosse escrita. Até porque não faz
sentido desejar que uma coisa não seja o que é, pois caso não a fosse, sabe-se lá
o que seria, e não tenho acesso a esse “sabe-se lá”. Eu sou, eu e minha história,
fincadas no existir, e é isso o que importa. Arrependimento também é algo sem
senso, uma vez que a pessoa que se arrepende já é outra depois do
acontecimento; é injusto, é cobrar uma clareza da “pessoa de antes” que só a
“pessoa de depois” poderia ter. Arrependimento não mata, pelo contrário: dá
muito mais vida para contar. A Marcela de depois, a Marcela de agora, não tem
tanta clareza, mas precisa aproveitar a lucidez que brota iluminando o caos
desses momentos-bagagem.
Não sofro como já
sofri, como quando perdi minha hélice, por exemplo. Isso porque aprendi a ficar
mais na realidade que nos meus sonhos e (pasme!) ela nos ensina que
nada é tão grave assim. O real, com seus olhos assustadores arregalados, pode
fazer menos mal que os sonhos cor-de-rosa bebê que piscam para nós
sedutoramente. Pois é por ter voltado de mais um desses passeios pela
realidade, me invadindo quase que literalmente, que posso dizer algo.
Nós nunca nos
encontramos. Nossos corpos, sim, nossa saliva, suor, desajeito e desejo. Mas,
nós, não. O momento de abrir as portas é quase o mesmo – estamos lá,
disponíveis, as portas abertas nos chamam quase que irrecusavelmente e por elas
entramos. Você com a sua e eu com a minha. Mas, na hora de sair, cada um faz um
movimento que muda tudo: você fecha; eu a deixo sempre (toda vez,
religiosamente, condenadamente) entreaberta. Quisera eu ter o desprendimento
necessário para fechá-la imediatamente após esses momentos. Entenda, é difícil
lidar com portas entreabertas.
Qualquer vento (ou
perfume) escancara a porta, mesmo quando ela está prestes a bater de vez. Você
me chama e eu a abro completamente, sem pensar duas vezes, ou mesmo que pense –
uma, duas, três. Pela fresta eu te observo, sei do que você gosta, o modo como
mexe os cabelos, os cantos dos dedos, quando está pensativo ou chateado. Vi o
quanto mudou nesses anos – tudo pela frestinha pela qual enxergo muito. Você
talvez não tenha visto muito de mim.
Eu não sei bem nomear
esse movimento que eu faço, batizá-lo de algum sentimento maior. Tenho
consciência apenas de que ele existe, essa abertura está inegavelmente aqui. Como
sei que há um desencontro. Não dá para saber se sou eu que caminho mais a
frente ou você que fica para trás, noto apenas que me acostumei ao exercício de
desacelerar o coração quando estou nos seus braços, porque sei que a porta vai
se fechar logo em seguida e não quero que ele, acelerado, se espatife nela. E
essa talvez seja a razão deste texto: esse exercício não combina muito comigo,
eu espero por momentos em que possa acelerar o coração e ir, longe, sem
amarras, sem me preocupar com portas ou qualquer outra metáfora.
Não o culpo, nem me
culpo, assim como não me vejo como vítima – a questão não é fazer disso um
banco de réus. Todas as vezes que encontrei a porta aberta e abri a minha,
mesmo que movida por um desejo quase instintual, estive inteira, e esta
sensação é uma das melhores na vida. A questão é que, depois, com a porta
fechada, por vezes me sentia metade, menos do que sou, e esta não é uma boa
sensação. Por isso, com a mão na maçaneta, eu te digo: obrigada por cada vez
que estivemos juntos. Eu aprendi muito com esta história. E o leve desconfiar
de que para você não seja uma história, mas momentos isolados, já faz com que
eu me sinta menor e nos coloca de novo em movimentos distintos. E o meu
movimento, agora, é o de fechar a minha porta e ir embora deste longo conto –
buscando outras folhas em branco onde possa escrever de novo com o (taquicárdico) coração.
Marcela, como pode?
ResponderExcluirAcabei de chegar aqui no seu lugar, no seu jardim, e estou encantada de um jeito estranho e lindo.
O seu comentário lá no blog me arrancou um sorriso da alma. O seu texto me arrancou lágrimas dos olhos, tamanha minha identificação.
E eu nem sei mais o que dizer. Na ausência das minhas palavras, te ofereço o arrepio do corpo. Sua escrita é linda e muitas pessoas precisam conhecê-la.
(Também li o texto anterior a esse e, ó: AMO o Camelo. Só pra constar. Ainda volto pra te ler mais).
Beijos.
Que lindo e sincero! Sei que ao fechar essa porta você, mesmo que fique no escuro um tempo, vai encontrar várias portas abertas!!
ResponderExcluirBeijos amiga