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Breve estória de uma menina qualquer


Já havia semanas que aquilo acontecia. A imensa casa não deixava à vizinhança paz. O silêncio que ela emanava era ensurdecedor; de tão intenso grau, que parecia alcançar o mundo todo. Todos que por lá passavam se sentiam profundamente incomodados. 'Que o silêncio não era um silêncio continuado, n'onde a vida está em gestação e milhares de coisas estão brotando a cada minuto sem serem vistas; era um mutismo abruptamente interrompido e interrompedor, como se todas as coisas tivessem cessado de brotar de repente. E ninguém poderia suportar o desértico ar que era obrigado a respirar desde que tudo começou, enchendo os pulmões de nada (será que começara com um início, desses que delimitam o estado de agora com o de antes? ou tudo se passara dia-a-dia, um quanto a cada manhã, sem que ninguém desse por conta, e somente quando ficara grande - a ouvidos menos sensíveis - fora alarmado?). Dentro de seu quarto, sozinha no casarão e alheia aos gritos sem voz que vinham lá de baixo, e aos socos sem som que tentavam em vão estremecer a porta, estava a menina.

Alheia não era bem a melhor descrição para aquele ser humano de alma contorcida. Não é que ela não sabia o que se passava. Ao contrário e muito pior, era justamente o fato de saber tanto que causava tudo aquilo. Ela apenas desejava não poder saber. Por Deus! era isso que ela estava o tempo todo desejando. Como pôde ter sorvido a vida em goles tão profundos e chegado até ali? Qual era o problema da superfície? Talvez seja esse mesmo o motivo de tamanho silêncio aos ouvidos de outrem. E, havia dias, ficava em casa. Não é que ela desejava morrer, afinal, desde que fora arrancada do ventre e respirou os primeiros momentos de vida, estava destinada a amá-la como quem não tem outra alternativa - ela só queria não ter existido.

De que padecia? De algum mal, doença, tristeza, solidão? Para nomear aquilo que se passava com a menina era necessário utilizar o palavreado daqueles tantos que estavam fora do casarão e que há muito não faziam sentido para ela. Deus! Como falam demais! Não queria mais sentenças, nem tampouco explicações. Ela apenas desejava entender menos, ignorar mais; não suportava mais o peso de sua lucidez arregalada para o mundo. Não é que estava triste ou cansada, ela apenas estava: e isso era suficiente para querer não mais estar.

De uma coisa - entre as tantas outras - estava mais certa que nunca: ela não nascera para o mundo das coisas tangíveis. Caíra por acaso na materialidade grossa da realidade. Desde pequena tivera dificuldades com direções, objetos e suas funções, praticidades. Como, então, conviver com as pessoas que mais e mais pareciam se misturar à crueza das coisas? Acostumada a ter como foco e passatempo as miudezas d'alma dos homens, prestando atenção ao humano como se disso dependesse para viver, quando quase ninguém parecia fazer o mesmo, a menina se sentia em um não-lugar.

Deitada em sua cama (sou eu quem nomeio o objeto - a ela poderia ser qualquer outro: a isto, sim, estava alheia), fechava os olhos, na vã tentativa de espantar tudo o que compreendia. Compreender era tão fácil para ela! Por quê? Por que não podia arrancar o que sabia, esfregar o entendimento até sair inteiro na água de um banho dado à sua alma? E mais, por que não podia - se, como numa espécie de trato, aceitasse toda aquela montanha que a havia enchido até a tampa, tendo em troca o bloqueio de adquirir novos entendimentos - perder a capacidade de compreender o que estava por vir?

De olhos bem fechados, a menina sabia (ela não estava sempre sabendo?) que estava condenada. Por alguns instantes, sonhou sem dormir - o que fazia todos os dias de sua vida -, passeando por sua dimensão particular, em um mundo onde, naquele momento, também havia muito silêncio - mas um silêncio continuado, n'onde a vida está em gestação e milhares de coisas estão brotando a cada minuto sem serem vistas. Suspirou (ficando eu sem saber em qual dos mundos este suspiro esteve), levantou-se da cama, e, com poucos passos, chegou até a porta. Daquele casarão para fora - ela tinha perfeita consciência - havia um silêncio a quebrar.

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