É semifinal do campeonato. O atacante recebe a bola no sufoco, passa-a por cima de um, dribla outro, chuta com categoria, ali, bem no cantinho, o goleiro tenta, mas, quando se dá conta, já era, não há o que ser feito, suas mãos agarram o nada e vê o que todos também acompanham, sim, é, é ele: o GOL (necessário respeitar as maiúsculas). A torcida se levanta, estufa o peito, mas, antes mesmo da explosão de gritos, um apito para tudo: os olhos falíveis do juiz veem um impedimento. Não havia. Com o resultado, é o outro time que vai para a final. Tudo muda numa rápida fração de segundo. E se o juiz tivesse acertado, estaria o time classificado? E se o time fosse classificado, seria ele a levar a taça? Deve haver um mundo aonde, nesse momento, os gritos que não puderam se soltar do peito ecoam "É campeão!".
Esse mundo é muito pequeno para caberem todos os outros. E é muito grande também. Deve haver um lugar onde habitam todos os "se's" e "não's", para onde vai tudo-que-poderia-ter-sido. Para lá é que vão os amigos que se perderam, a vida que o automóvel interrompeu naquele dia de chuva (E se ele tivesse usado o cinto?). Mundo deve existir, onde vira caso de amor aquela rápida troca de olhares, onde são arremessados os beijos timidamente transformados em "até mais", ou os “até mais” ditos muito tarde. Nesse lugar moram todas as intenções e os desejos-faísca que viraram pó lá se transformam em chamas. Vivem todos os jogadores de futebol e veterinários e bailarinas de que as crianças tiveram que abrir mão para serem apenas “gente grande” no mundo grande-engolidor. Tem que haver. Há de existir um universo inteirinho só para as expectativas que não vingaram nesse mundo, outro n'onde as promessas se cumpram. Onde a moça que pede dinheiro chorando no ponto de ônibus, enquanto escuto Chico Buarque dizer que “canta a dor que não soube chorar” no fone, esteja cantando. Todas as músicas que poderiam ter sido feitas agora ressoam nesse mundo. Mundo do irremediável. Do sem-volta. Onde o que quebrou está inteiro, onde o que não foi é, onde vivem as segundas chances.
Desde criança tive o costume de dormir com alguma luz da casa acesa. O breu, completo e total, sempre me causou falta de ar, como se ele me dominasse e eu não pudesse fazer nada. Sou tão pequenina no escuro. Por vezes, não é assim que a vida faz? Imperiosa, mostra-se no comando; juíza, marca um impedimento no seu gol, e você não pode fazer nada. Quantas vezes senti a mesma falta de ar quando era pressionada pela preposição chata que a vida impôs ao meu verbo “assistir”, transformando a vontade de ajudar em apenas ver, atônita, o que se passa? Ver a mão estendida para mim no ponto de ônibus, em uma metonímica e sufocante representação das milhares de mãos que há estendidas por aí, assim como alguém teve de ver o corpo inerte no automóvel e tirá-lo de lá, ou mesmo algum outro que viu seu desejo virar nada. Somos tão pequeninos diante da vida. De tão irônica, ela parece às vezes estar sentada em um banquinho, rindo, enquanto nos malabarizamos por esse mundo que é o nosso, não importa quantos outros mundos existam nele.
A vida é categórica: “Se's” e “não's” sempre irão existir. Para uma única coisa que é, há um infinito de outras que abriram mão de ser. O instante agora já foi, levando consigo para os outros mundos tudo o que ele não pôde ter sido. E isso é, em alguns momentos, assustador. É tão esmagador que podemos nos perder no escuro. E é por isso que desafio a vida, tal como desafio o breu: acendo a luz. Talvez seja esse o motivo que faz minha mão ficar mais tempo no aceno, e meu abraço não desejar nunca se soltar. Às vezes o meu "eu te amo" é "bom dia" sim... quando ele quer sair, não sou eu quem vai contra. Quero me demorar naquilo que eu gosto e posso fazer, enquanto tudo o que não posso vai parar sabe-se lá onde... nem que para isso seja preciso tropeçar nas preposições que a vida impõe aos meus verbos. À medida que o tempo vai passando - e ele passa, mais acredito que pensar muito antes de agir não é lá grande sinal de amadurecimento, e isso eu aprendi com a criança que ainda mora em mim e não foi parar em um desses mundos. Amadurecer talvez seja ouvir essa criança que olha para a vida sentada no banquinho e a convida para brincar com ela. Pois, estranhos seres que somos, crescemos - pensando antes de fazer tudo, modelamos a espontaneidade, aplicamo-nos manuais e rotinas, e quando nos damos por si, contraditórios, estamos agindo sem pensar. Sem pensar que é nesse mundo que vivemos, e devemos tentar fazê-lo melhor do que todos os outros. Sem pensar que podemos olhar para trás e ter contribuído mais com o escuro esmagador da vida do que com os pontos de luz que deixamos por ela: resignando-nos, sentindo menos, expressando-nos sem vigor, pensando demais nos "se's", dizendo muitos "não's". E à medida que o dia passa e a noite vem chegando, pensamos, tolos, que somos maduros quando já não temos mais medo de dormir no breu, enquanto as crianças sabem bem o que temer quando acendem o abajur. Por isso preciso, precisamos, ser criança diante da vida.
Esse mundo é muito pequeno para caberem todos os outros. E é muito grande também. Deve haver um lugar onde habitam todos os "se's" e "não's", para onde vai tudo-que-poderia-ter-sido. Para lá é que vão os amigos que se perderam, a vida que o automóvel interrompeu naquele dia de chuva (E se ele tivesse usado o cinto?). Mundo deve existir, onde vira caso de amor aquela rápida troca de olhares, onde são arremessados os beijos timidamente transformados em "até mais", ou os “até mais” ditos muito tarde. Nesse lugar moram todas as intenções e os desejos-faísca que viraram pó lá se transformam em chamas. Vivem todos os jogadores de futebol e veterinários e bailarinas de que as crianças tiveram que abrir mão para serem apenas “gente grande” no mundo grande-engolidor. Tem que haver. Há de existir um universo inteirinho só para as expectativas que não vingaram nesse mundo, outro n'onde as promessas se cumpram. Onde a moça que pede dinheiro chorando no ponto de ônibus, enquanto escuto Chico Buarque dizer que “canta a dor que não soube chorar” no fone, esteja cantando. Todas as músicas que poderiam ter sido feitas agora ressoam nesse mundo. Mundo do irremediável. Do sem-volta. Onde o que quebrou está inteiro, onde o que não foi é, onde vivem as segundas chances.
Desde criança tive o costume de dormir com alguma luz da casa acesa. O breu, completo e total, sempre me causou falta de ar, como se ele me dominasse e eu não pudesse fazer nada. Sou tão pequenina no escuro. Por vezes, não é assim que a vida faz? Imperiosa, mostra-se no comando; juíza, marca um impedimento no seu gol, e você não pode fazer nada. Quantas vezes senti a mesma falta de ar quando era pressionada pela preposição chata que a vida impôs ao meu verbo “assistir”, transformando a vontade de ajudar em apenas ver, atônita, o que se passa? Ver a mão estendida para mim no ponto de ônibus, em uma metonímica e sufocante representação das milhares de mãos que há estendidas por aí, assim como alguém teve de ver o corpo inerte no automóvel e tirá-lo de lá, ou mesmo algum outro que viu seu desejo virar nada. Somos tão pequeninos diante da vida. De tão irônica, ela parece às vezes estar sentada em um banquinho, rindo, enquanto nos malabarizamos por esse mundo que é o nosso, não importa quantos outros mundos existam nele.
A vida é categórica: “Se's” e “não's” sempre irão existir. Para uma única coisa que é, há um infinito de outras que abriram mão de ser. O instante agora já foi, levando consigo para os outros mundos tudo o que ele não pôde ter sido. E isso é, em alguns momentos, assustador. É tão esmagador que podemos nos perder no escuro. E é por isso que desafio a vida, tal como desafio o breu: acendo a luz. Talvez seja esse o motivo que faz minha mão ficar mais tempo no aceno, e meu abraço não desejar nunca se soltar. Às vezes o meu "eu te amo" é "bom dia" sim... quando ele quer sair, não sou eu quem vai contra. Quero me demorar naquilo que eu gosto e posso fazer, enquanto tudo o que não posso vai parar sabe-se lá onde... nem que para isso seja preciso tropeçar nas preposições que a vida impõe aos meus verbos. À medida que o tempo vai passando - e ele passa, mais acredito que pensar muito antes de agir não é lá grande sinal de amadurecimento, e isso eu aprendi com a criança que ainda mora em mim e não foi parar em um desses mundos. Amadurecer talvez seja ouvir essa criança que olha para a vida sentada no banquinho e a convida para brincar com ela. Pois, estranhos seres que somos, crescemos - pensando antes de fazer tudo, modelamos a espontaneidade, aplicamo-nos manuais e rotinas, e quando nos damos por si, contraditórios, estamos agindo sem pensar. Sem pensar que é nesse mundo que vivemos, e devemos tentar fazê-lo melhor do que todos os outros. Sem pensar que podemos olhar para trás e ter contribuído mais com o escuro esmagador da vida do que com os pontos de luz que deixamos por ela: resignando-nos, sentindo menos, expressando-nos sem vigor, pensando demais nos "se's", dizendo muitos "não's". E à medida que o dia passa e a noite vem chegando, pensamos, tolos, que somos maduros quando já não temos mais medo de dormir no breu, enquanto as crianças sabem bem o que temer quando acendem o abajur. Por isso preciso, precisamos, ser criança diante da vida.
É semifinal do campeonato. O atacante recebe a bola no sufoco, passa-a por cima de um, dribla outro, chuta com categoria, ali, bem no cantinho, o goleiro tenta, mas, quando se dá conta, já era, não há o que ser feito, suas mãos agarram o nada e vê o que todos também acompanham, sim, é, é ele: o GOL (necessário respeitar as maiúsculas). A torcida se levanta, estufa o peito, mas, antes mesmo da explosão de gritos, um apito para tudo: os olhos falíveis do juiz veem um impedimento. Não havia. Com o resultado, é o outro time que vai para a final. Tudo muda numa rápida fração de segundo. "E se o juiz tivesse acertado, estaria o time classificado? E se o time fosse classificado, seria ele a levar a taça?" A vida, sentada em seu banquinho, ri dessas divagações do atacante. O atacante, de cabeça baixa, volta para o vestiário escuro, mas, ao ouvir seu nome gritado lá fora em um grande coro, pensa nas muitas vitórias que ainda pode conseguir. No escuro, ficara difícil saber se os cantos dos seus lábios se voltaram para cima em um sorriso, mas isso fica perfeitamente evidenciado quando, nesse mundo do aqui-e-agora, em um rápido movimento quase involuntário, o jogador acende a luz.
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