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No mesmo barco

"Isso também passa", disse a Razão, enxugando os pés pela água que teimava em entrar no barco, passando pelos buracos que Emoção havia feito em uma de suas molecagens. "Um dia ela ainda afunda isso aqui", suspirou. "Está vendo essas águas que aí passam?", prosseguia ela, "É assim como tudo em sua vida. Qualquer coisa, seja boa ou ruim, uma hora está aqui, outra hora está lá, ainda que nossa memória se encarregue de mostrar aonde estava antes e nossa saudade possa querer resgatar". Equilibrando-se na borda do barco, Emoção nem parece ouvir o que Razão me diz. "Ligue. Insista todos os dias até ouvir um 'sim'. Volte no tempo e o traga de volta. Consulte cartas, búzios, horóscopo semanal. Quebre todos os dedos de sua mão o esmurrando até que ele aprenda que não pode agir assim. Reze para todos os santos, faça penitência. Ou faça qualquer coisa, mas não deixe para que o tal de Tempo resolva tudo". "Já passou antes", insiste a Razão. A velha senhora, que aprendeu a ter paciência com o geniozinho difícil da sua companheira de barco, parece não se deixar abalar. "Repito: Tudo passa. Outros 'tudo' já passaram e você sabe. Você não duvida de que passe". "Você não duvida mas também não chega a acreditar", rebate Emoção, que pula para dentro do barco o fazendo estremecer. Razão revira os olhos e prossegue, "Quando é possível insistir, você tem que insistir...", "Você nunca quer que ela insista!", interrompe a garota, impaciente. "... Mas quando não há mais nada a ser feito, o jeito é guardar seus desejos na caixinha do Tempo e deixar que ele tome conta", retoma minha inabalável senhora, agora com os pés já completamente secos. Emoção passou a me encarar com aqueles seus olhos penetrantes que sempre me causaram uma espécie de fascínio. "Não, não seja tão passiva assim. Se tudo o que você tem é o momento agora, não faz sentido não agir, tão e somente, agora. O Tempo é quem tem que adequar-se a seus desejos. Veja esse mar ao seu lado: é tudo o que você tem. Aquela ilha lá na frente?", ela aponta, "Você não pode estar certa de que chegará lá". Razão ainda tenta rebater. "Ela já chegou antes, tantas e tantas vezes..." e suspira, sabendo que Emoção não se importa com que ela acabara de dizer. "Voo-doo! Você já tentou usar voo-doo?"

Razão e Emoção sempre moraram no meu barco. Apesar de possuírem opiniões distintas e discutirem sempre, elas não chegam a ser rivais. A sabedoria da minha senhora consegue conviver com a teimosia juvenil de Emoção. O crescimento das duas é inversamente proporcional: quanto mais o tempo passa, mais velha e experiente fica Razão, enquanto a jovem inconsequente fica cada vez mais jovem e mais inconsequente. Cá entre nós, sempre tive uma simpatia maior pela garota de olhos fascinantes. Confesso que nas vezes em que ela, cheia de entusiasmo, me pega pela mão e me leva para as profundezas do mar, eu mergulho sem hesitar, e - não que me orgulhe disso - deixo Razão falando sozinha. Pois é essa mesma Razão quem me salva todas as vezes em que vou fundo demais. Ela estende os braços, me traz à superfície, e eu sempre me assusto com a quantidade de ar que penetra em meus frágeis pulmões. Dias atrás, depois de um desses mergulhos perigosos, ela resolveu fazer longos sermões sobre a importância de não se ir tão fundo, mas, vendo que eram inúteis, agora está empenhada em alguns exercícios para fazer meus pulmões se acostumarem com tanto ar, o que tem gerado bons resultados. Acho que ela realmente teme que Emoção afunde o barco ou que eu não consiga mais voltar à superfície. Eu não acredito muito nisso. Apesar de não ser toda ouvidos à Razão, tenho muito a aprender com ela. Eu preciso da minha boa velhinha com todos os seus discursos e cuidados exagerados. Tal como preciso da minha garota, tão jovem e tão poderosa. As duas, estando no mesmo barco, só querem me ajudar.

"Não, Emoção, nunca usei voo-doo, e nem vou usar. Aquiete-se. Eu realmente não duvido de que tudo isso passe", eu disse. Uma lua bonita apontava no céu, que casava com o mar em algum lugar do infinito. Quando Razão se afastou, sussurrei para uma Emoção decepcionada: "Mas também não chego a acreditar...". E sorrimos. Já era tarde. Precisávamos descansar.

Comentários

  1. Sempre aqui, me emocionando...
    Compartilhamos a afinidade com a jovem, não é mesmo?!
    Mas tô precisando urgentemente desse ar nos pulmoes.... =/ que saudade de você minha amiga...
    Não esqueça que te amo muito!!
    beijo grande

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