Pular para o conteúdo principal

Por cima do arame


"(...)Você não sabe, mas acontece assim quando você sai de uma cidadezinha que já deixou de ser sua e vai morar noutra cidade, que ainda não começou a ser sua. Você sempre fica meio tonto quando
pensa que não quer ficar, e que também não quer - ou não pode - voltar. Você fica igualzinho a um daqueles caras de circo que andam no arame e de repente o arame plac! ó, arrebenta, daí você fica lá, suspenso no ar, o vazio em baixo dos pés. Sem nenhum lugar no mundo, dá para entender? (...)” Trecho do conto Uma praiazinha de areia bem clara, ali, na beira da sanga; in: Os dragões não conhecem o paraíso, 1988, Caio F.

Arrumar malas, desarrumar gavetas. Dizer "tchau", pegar o ônibus e partir - simples método utilizado todo fim de semestre ou início de feriado que sabemos de cor. Assim como sabemos de cor o número daquele disk-pizza de emergência, ou os horários dos ônibus que ligam uma cidade à outra. A gente tem que se acostumar, não é? Aprendemos a cozinhar (lembrando a cada garfada que entre a comida da nossa mãe e a nossa existe um abismo), descobrimos que é melhor pegar o ônibus cinco minutos mais cedo, pois passa mais vazio, compramos um plano de celular em que se liga de graça para outro DDD. Macetes de um cotidiano. Organizamo-nos da melhor maneira possível para que nos sintamos em casa num lugar onde sequer visitávamos antes. A gente se acostuma, sim. E aí partimos.

Chegamos na nossa antiga-verdadeira-a-de-sempre casa e descobrimos que o quarto mudou de lugar e que tem uma TV nova na sala. Aquela colega da escola engravidou e a irmã mais nova teve sua primeira ilusão amorosa, que até já se transformou em desilusão. As ruas já não são as mesmas, pessoas nascem e morrem enquanto estamos fora. Natural, sim? Trivialidades. É a engrenagem do mundo em movimento, o tempo ajeitando as coisas a seu modo. Certamente. E esses momentos banais simbolizam aquilo que, pouco a pouco, começamos a desconfiar: que a nossa vida está passando sem nós. Nossa casa é um lar, de fato, mas um lar e a gente, um lar mais a gente. As coisas mudam com a nossa chegada, ficamos anexos a uma rotina que aprendeu a existir sem a nossa presença. Mas a gente também se acostuma. Afinal, não é difícil se habituar à comida de mãe, cheiro do quarto, cachorro fazendo festa. Não é difícil se acostumar com o tanto de afeto que fica guardado por meses e que é derramado sobre nós quando chegamos. Sim, a gente se acostuma. E aí partimos.

Dois endereços. Duas chegadas e duas idas. O número “dois” se faz imperioso... são duas escovas de dente, dois celulares, um secador bivolt. Dois modos de viver... para uma só vida. E é aí que entramos em pane. Afinal, não trocamos de chip, não temos uma válvula que vai de 220V a 110V num passar de segundo... somos lentos humanos que se vêem obrigados a acostumar-se com o desacostume. Temos que ir quando queremos ficar, temos que ficar quando a saudade nos cutuca e nos pede para ir, tal qual criança fazendo birra, e, quando finalmente aprendemos a lidar com ela, é substituída por outra. Quando enfim decoramos um passo novo, o ritmo é trocado. E aí partimos.

Arrumar malas, desarrumar gavetas. Dizer “tchau”, pegar o ônibus e partir - talvez o método não seja assim tão simples. E então, com o arame arrebentado, aprendemos a viver nos ares. Estando em curto-circuito, a gente não se encaixa completamente a nenhum lugar. E isso nos assusta. Tirar os pés do chão assusta. Mas talvez faça parte, justamente, do que eles chamam de amadurecer: sair do cômodo lugar onde nossos pés estão fincados. Permitir-se ser nômade de si mesmo, não estagnar. Viajar com uma bagagem e voltar com outra sempre maior. Aceitar as conseqüências de um vôo inseguro, apreciando a vista. Ainda que sejamos só um e não dois, somos sempre mais, a cada chegada. Não, não é tão simples, artistas de circo têm medo de cair do arame arrebentado... mas este não é um problema tão fatal: em meio a um número “dois” tão presente em nossa vida, temos também os dois lados para amortecer a nossa queda. E aí partimos. E aí chegamos. E aí aprendemos que é a este eterno partir-e-chegar que estamos destinados, irremediavelmente. Não pertencer a nenhum lugar do mundo pode significar pertencer a todos, sem o arame debaixo dos pés e com a imensidão toda ao redor. Então pertencemos.

E aí voamos.

Comentários

  1. Que liiiiiiiiiiiiiiiiindo!!!

    Final libertador e grandioso, Cela.
    Acho que a incompletude é a nossa sina, mas a disposição e a coragem de pertencer aos vários lados pros quais pendemos com certeza rompe as amarras das nossas dependências, engrandece.

    Adoro te ler.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Nada rima com angústia

São 18h40 no centro da capital. Luzes, buzinas, e o irritante, insuportável anda-e-para da minha condução. Pior ainda para o motorista, eu penso. Aquele cansaço, a vontade de chegar, a esperança de engatar e para. De novo. O homem, muito esperto, criou máquinas que fazem andar, mas agora não chega mais a lugar algum. Vida irônica, eu penso. E paro. De novo. Do meu lado, uma mulher me acotovela sem querer, mexendo na bolsa. Eu odeio a mulher. Eu queria que aquela mulher não existisse. Eu queria que ninguém existisse, que as pessoas de repente sumissem, todas à minha frente, de todos os carros, os que estão a pé também, para que eu pudesse fluir. Meu Deus! Eu não estou fluindo. Minha vida parece a condução em que me encontro: anda-e-para. Aquele cansaço, a vontade de chegar, a esperança de engatar... e para. De novo. (...) Nada rima com angústia, penso de repente. An-gús-ti-a. Não pode ser à toa que nada rima com ela. Angústia é dor cega e sem par, à procura de ancoragem na palavra.

31/10/2010

Eu acordei cansada. No espelho, um rosto com olheiras me encarava sem sorrir. Eu bem sabia que a mistura de álcool, dançar muito, comer pouco e dormir mal não poderia dar em boa coisa. Ao caminhar até a cozinha percebi que minhas pernas latejavam e meu reflexo não estava bom. Tremia ao pegar o copo d'água. "Tudo bem", eu pensava, "a festa estava boa e hoje é dia de almoçar comida de mãe". Eu só queria saber, então, porque o rosto com olheiras não conseguia sorrir, se o cansaço era apenas cansaço, se o que eu sentia era somente o resultado de quem está aproveitando seus dezenove anos de vitalidade e pura energia. "Uma boa noite de sono em sua cama fofa e, pronto, você já estará bem outra vez". Por que, dentro de mim, algo se recusava a acreditar? O telefone interrompeu meus pensamentos, a carona havia chegado. Viagem tranquila, apenas alguns imprevistos. Família esperando, tudo dentro do que eu imaginava que seria. Esbocei um sorriso. Por que, meu Deus,

Sem dobras

"Eu quis te conhecer, mas tenho que aceitar: caberá ao nosso amor o eterno ou 'não dá'. Pode ser cruel a eternidade, eu ando em frente por sentir vontade." Janta, Marcelo Camelo Confesso que, quando fiquei sabendo que Marcelo Camelo estava namorando Mallu Magalhães, há uns anos atrás, minha reação foi de completo espanto. Eu achava estranhíssimo um homem de mais de trinta anos e uma garota de dezesseis conseguirem dividir seus mundos; não era somente a diferença de idade que me assustava, mas o fato de Mallu estar na adolescência, uma fase em que parece que tudo está mais maleável e mudando em uma velocidade diferente - e, outra confissão: ainda acho. Eu, com meus vinte e um anos, olhando para trás e vendo o quanto mudei nos últimos cinco, acho difícil me imaginar com aquela idade me interessando por um cara bem mais velho e, ainda mais, ele se interessando por mim. Minha cabecinha limitada, com suas concepções de mundo, que endireita a realidade em gavetas se